Em linhas gerais, eu percebo que meu trabalho parte de uma pesquisa em arquivo, então de um trabalho de campo e, num terceiro momento, trata de como apresentar essa pesquisa. Tenho pensado meu trabalho a partir de dois triângulos: no primeiro, as pontas são formadas por: pesquisa em arquivo, expedições/caminhadas e exposição. No segundo, as pontas...
Em linhas gerais, eu percebo que meu trabalho parte de uma pesquisa em arquivo, então de um trabalho de campo e, num terceiro momento, trata de como apresentar essa pesquisa. Tenho pensado meu trabalho a partir de dois triângulos: no primeiro, as pontas são formadas por: pesquisa em arquivo, expedições/caminhadas e exposição. No segundo, as pontas são formadas por: publicação/livro, site/arquivo e conversas/debates. Na Bienal da Bahia, acho que consegui realizar todas essas etapas do trabalho, mas nem sempre isso acontece. Depois de conhecer o Juraci Dórea e a forma como ele documenta tudo, acho que isso ficou mais latente em mim. Nas exposições ou, por exemplo, no site, eu tenho documentado tudo: imagens dos trabalhos, os textos de referência, os vídeos, os links. Nas artes visuais, tem um caminho para os artistas que é passar o ano todo trabalhando para produzir obras para uma exposição. No meu caso, apesar de a exposição amarrar e dar visibilidade à pesquisa, ela não é o final do trabalho, nem é mais importante que as outras partes. Depois da exposição, tem ainda todos esses outros agenciamentos – a publicação, as conversas, as oficinas, os vídeos e o site (arquivo), que é o repositório de todo o projeto.
Apesar da maior procura do país por estrangeiros, a legislação vigente aqui sobre o tema é bastante defasada. O que está em vigor atualmente é o Estatuto do Estrangeiro, de 1980, considerado uma herança da ditadura militar e inspirado no paradigma da segurança nacional, que impõe uma série de controles burocráticos e restrições às possibilidades de residência no Brasil.
O Estatuto do Estrangeiro, entre muitas coisas, veta ao imigrante o direito ao voto, o direito de se manifestar e se organizar politicamente, o direito de ser o proprietário de uma empresa e o direito de produzir qualquer tipo de conteúdo de mídia. Museu do Estrangeiro surgiu como um desdobramento de outras pesquisas que tenho realizado sobre a questão da migração Norte-Sul no Brasil. Como em Desterro e Campo Geral, o ponto central desse trabalho foi discutir a falsa ideia de um Brasil mestiço e cordial. O trabalho se desenvolveu a partir de uma série de entrevistas com imigrantes e refugiados que vivem no centro de São Paulo e da coleta de material impresso produzido pelas várias comunidades que vivem na cidade. Inicialmente, era uma pesquisa sobre a imigração em São Paulo, com os bolivianos e coreanos, mas que se expandiu para um projeto sobre migração em geral. Comecei a pesquisar muito sobre o processo de embranquecimento, voltei ao Nina Rodrigues e ao Estácio de Lima. Por conta do projeto Museu do Estrangeiro, recebi um convite para trabalhar com refugiados africanos e haitianos que moram na ocupação Hotel Cambridge, no centro. Essa ação na ocupação está ligada à minha pesquisa atual, a Frente de Trabalho. Quero trabalhar, especificamente, com as remoções nas grandes cidades e suas consequências – como, por exemplo, durante a Revolta da Vacina, no século passado – e as remoções durante a Copa do Mundo e as Olimpíadas nos últimos anos. A proposta é fazer uma espécie de censo dos refugiados para saber de onde e por que eles vieram para cá, qual a história deles.
Acho que a principal diferença de uma pesquisa sobre imigração feita por um sociólogo ou antropólogo, e outra por um artista é na forma de apresentar essa pesquisa, um arquivo. Essa é a imagem que busco desvelar. Para a expografia das minhas exposições, não faço um plano de montagem, não desenho um croqui. Reúno todas as coisas que coletei durante a pesquisa, inclusive o mobiliário, levo para o espaço expositivo e vou organizando (as fotografias, os fac-símiles de documentos, os livros da minha biblioteca, os vídeos, os objetos). Em Campo Geral tem até o quadro negro com o giz. Nesses trabalhos, repito os mesmos elementos, o pallet com os livros, a caixa de guardar obras, os bancos de madeira, a mesa de trabalho com os cavaletes, as prateleiras; são todos mobiliários fáceis de construir que vou levando de uma exposição para outra. Tento fazer um contraponto ao lugar fechado da pesquisa acadêmica, que fica restrito ao espaço da universidade. De fato, uma coisa que eu penso muito é como fazer uma pesquisa-trabalho que tenha alguma função social, e o trabalho artístico tem uma liberdade bem maior que um texto acadêmico.
A participação em residências artísticas é fundamental. Minha pesquisa está diretamente ligada ao trabalho de campo – pesquisa em arquivos e a história oral dos locais onde desenvolvo as residências. Tenho uma trajetória bem recente, uma das minhas primeiras residências foi em 2012, o ROAD um projeto de Residências Móveis do Capacete (RJ). Participaram comigo os artistas Bruno Jacomino, Lucas Sargenteli e Sofia Caesar numa viagem de carro de dois meses, do Rio de Janeiro até Belém e terminando em Brasília. A proposta era investigar cidades que deixaram de existir, ou que estavam em processo de deixar de existir, ou que achávamos que iriam se modificar tanto que deixariam de existir em algum momento. Mapeamos uma série de cidades. Foi aí que surgiu Canudos, foi meu primeiro contato com a cidade; além de ter voltado depois de alguns anos ao sertão cearense, Quixeramobim, Senador Pompeu e Crato, que são cidades onde existiram os Campos de Concentração entre 1915 e 1932, durante períodos de seca, e criados pelo governo federal para abrigar e oferecer moradia e alimentação aos retirantes. Os “currais do governo”, como ficaram conhecidos, serviram também para conter a migração para as grandes cidades, como Fortaleza, transformando-se em lugares de confinamento e abandono dessas populações.
Nessa Residência foi também meu primeiro contato com a Amazônia. Essa viagem lançou as bases do projeto Desterro, que foi divido em três momentos “Cidade Partida”, em Canudos, “Campo Geral”, no sertão cearense, e “Frente de Trabalho”, que é um projeto ainda em andamento. Para mim, esses trabalhos estão todos conectados e são aprofundamentos e desdobramentos das mesmas questões.
Depoimento baseado em entrevista de Ícaro Lira ao Espaço Pivô (Abril 2017)
- Dados técnicos
Museu do Estrangeiro, 2017 | Instalação
Ícaro Lira
Diálogos sobre Arte, Migração e Trabalho | Residência Artística Cambridge
- Ações VB
- 20º Festival
- Outras conexões
Site do artista
Texto Um Museu no Bom Retiro, por Marta Mestre (BUALA, 2015) [port]
Instagram do projeto
- Anexos
Diversos materiais sobre o projeto e que o compõe
Aquarela do Brasil, peça do Museu do Estrangeiro
Projeto Bom Retiro, coletivo (Oficina Oswald de Andrade, 2015) [port]