Em 2013, após concluir o mestrado no Programa de Pós-Graduação da UFRGS em Porto Alegre e passar no concurso para professor efetivo do Departamento de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo, me mudei para Vitória–ES. O deslocamento e adaptação à nova cidade me levaram a tentativas de entendimento do contexto estético, político e social do lugar.
Como professor da disciplina de gravura, tenho um grande número de alunos que, semestre após semestre, trazem suas história e experiências de vida, as quais foram fundamentais para minha reflexão sobre o contexto histórico da cidade. Ao mesmo tempo, essas experiências fizeram com que eu me questionasse sobre a relação entre arte e sociedade. Essas conversas me fizeram perceber as marcas da violência presentes no cotidiano dos discentes e me contaminaram: histórias de estupro, roubo, desemprego, racismo me fizeram refletir sobre a fragilidade da vida e como aqueles que detêm o poder a manipulam. Nesse contexto, iniciei uma pesquisa que objetivava entender de que forma se estruturavam historicamente os índices de violência na cidade e no estado. Assim, me chamou atenção como a partir dos anos 60 esses índices cresceram exponencialmente, ao mesmo tempo em que se iniciava um grande processo de modernização econômica, conhecida no contexto capixaba como Grandes Projetos. Esse contraste levou à percepção de um contínuo, que a violência não se estruturava como um evento isolado, mas como uma condição histórica. Dessa forma, a noção de testemunho me pareceu importante: pensar a arte como forma de problematizar a atualidade sem perder a perspectiva histórica na qual ela está inserida. Assim, o período da ditadura militar me pareceu importante principalmente pelo meu desconhecimento sobre o período. A consciência da ignorância sobre minha condição histórica de latino americano, de ter nascido em 1985 e de não possuir uma memória sobre esse período me fez pesquisar sobre o processo de modernização econômica ao longo do regime militar. Nesse contexto, a ideologia me pareceu algo fascinante – não a ideologia do progresso, mas perceber como ela foi construída para fazer emergir um grupo e um modelo econômico para o país. Quando falo sobre isso não me refiro apenas a torturados ou vítimas da ditadura, mas a forma como uma sociedade é controlada por grupos que detém o poder econômico, político e militar. Na pesquisa, o que me interessa é a memória, a percepção da existência de uma estética por trás dos discursos de poder; memória que se relaciona com o processo de esquecimento e que permite o questionamento de uma lacuna, de por que essa história não parece minha e de como me apropriar dela, como tornar aquilo também meu.
Eu vivo em Vitória e me interesso pela realidade brasileira, assim como me interessa também a realidade de qualquer lugar que tenha relações e conflitos sociais. A partir desse interesse pelo período, me aproximei de um colega da universidade, professor do curso de História e Arquivologia, que é uma referência no estudo do período militar no Espírito Santo. Essa aproximação foi importante para que eu compreendesse a complexidade da discussão do contexto local e percebesse os caminhos percorridos por outros pesquisadores, e como pensar esse debate no campo da arte através da reflexão sobre o Estado de Exceção. Foi então que tive contato com os documentos do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, particularmente com os arquivos do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), responsável pela repressão política e ideológica ao longo do regime militar (1964–1985).
Os dois trabalhos que serão apresentados no 20º Festival Videobrasil (DOPS e Bem-vindo, presidente!) são importantes porque representam dois momentos da pesquisa. O trabalho Bem-vindo presidente! indica a relação de parte da sociedade civil, vale dizer empresários e políticos locais que contribuíram para a articulação da implantação do regime de exceção e a carga ideológica presente no discurso de progresso e desenvolvimento econômico. Boa parte dos dilemas presentes no contexto atual do estado capixaba – principalmente problemas associados a crimes ambientais e concentração de poder – possuem como lastro histórico o regime militar. A mineradora Samarco, por exemplo, foi fundada e teve seu projeto implementado ao longo do período militar. Os anúncios que cataloguei nos microfilmes do jornal A gazeta presentes no arquivo público apresentam a estética e a ideologia do progresso e, ao mesmo tempo, apontam para a continuação das relações, tendo em vista que muitas empresas publicaram anúncios em diferentes períodos do regime. É possível observar, inclusive, como essas mesmas empresas ou grupos empresariais se articulam politicamente até hoje, apresentando sua voz e influência política, como na campanha pedindo o impeachment da então presidente Dilma Rousseff. A leveza dos anúncios impressos em papel haini contrasta com o peso das mensagens e cria um ambiente no qual a memória se estrutura fragilmente. Assim, o trabalho ao mesmo tempo em que se relaciona com o evento, afasta-se dele, e através dessa distância nos permite refletir sobre a construção dos acontecimentos do presente e perceber as marcas daquilo que se viveu.
O trabalho DOPS, por sua vez, apresenta o Estado como agente repressor de entidades sociais. A perseguição a padres vinculados à teologia da libertação indica a intolerância do estado ao desejo de transformação social. A apresentação de arquivos do DOPS manipulados e recontextualizados como arte indica relações com o irrepresentável da ausência, o silêncio, o vazio e a morte presentes na censura e na autocensura, muito comuns em regimes totalitários. A relação de jogo busca apresentar a própria construção do arquivo como algo inacessível e as fotos desbotadas indicam uma memória turva, mas que se materializa na atualidade em ações do Estado, através da perseguição e repressão a entidades sociais.
Neste contexto penso que esses trabalhos trazem a relação com a memória, discussão recorrente em minha produção, mas com uma perspectiva histórica e política mais incisiva. Antes da mudança para Vitória, minha produção se estruturava na discussão da memória a partir da reflexão sobre a paisagem do sul do país, mais especificamente as transformações que ocorriam em minha cidade natal, Caxias do Sul-RS, através da demolição de casas de madeira tradicionais para a construção de prédios, fruto da forte especulação imobiliária. A gravura e suas relações com a fotografia já estavam presentes e continuam como importante dispositivo de articulação dos problemas formais presentes na minha pesquisa, principalmente na relação com a busca de novos suportes, como papéis e superfícies distintas (madeira, aço ou o próprio espaço expositivo), ou ainda os procedimentos de impressão, gravação, inversão e transposição de imagens. Um elemento importante que cada vez mais tem me interessado é o uso dos arquivos de Estado, problematizando, assim, uma suposta oficialidade desses documentos e suas implicações no debate sobre o passado.
Talvez a questão que eu possa ressaltar é a justaposição de memórias distintas. Não penso que a arte possa redimir nada ou remendar a realidade. Os trabalhos informam que há um tempo errado, uma lacuna que precisa ser trabalhada, pesquisada, investigada e que podemos perceber as diferenças e a continuidade dos discursos. A arte não conserta nada e minha pesquisa não almeja fazer isso, mas, sim, tornar perceptível que existe uma estética por traz da construção do discurso político totalitário e repressivo. Além disso, aponto para as possibilidades interpretativas e políticas por trás da imagem. Imagens são discursos, são formas de apresentação da ideologia que nos passam despercebidas cotidianamente. Nesse contexto as imagens transgridem ao serem retiradas da oficialidade de arquivos e recontextualizadas no campo da arte. Um anúncio da empreiteira Odebrecht da década de 70 pode nos trazer informações sobre a relação e os interesses entre Estado e capital privado e, assim, nos ajudar a problematizar o contexto atual brasileiro, para percebermos que existe uma violência do poder, de grupos econômicos que colocam seus interesses acima de qualquer concepção de sociedade. Assim não se trata de promover denúncia nem de levantar bandeiras, mas de encontrar na arte um espaço de debate sensível sobre as coisas do mundo. Creio que o artista é sensível à condição da sociedade na qual está inserido: não se trata de formar a imagem do inimigo, mas de apresentar como as imagens são permeáveis à sua condição histórica e o quanto discursos de prosperidade e desenvolvimento econômico podem esconder interesses de grupos hegemônicos.
Rafael Pagatini em depoimento a PLATAFORM:VB (Agosto 2017)