“A pesquisa teve início com uma visita preliminar a Varsóvia, mais ou menos um mês e meio antes da residência. Quando cheguei ao local, a equipe do A-I-R Laboratory havia preparado uma programação de percursos pela cidade com arquitetos, curadores e outras pessoas que apresentaram Varsóvia a partir de suas experiências e de seus olhares. Naturalmente, essa experiência já despertava a pesquisa, ainda que não soubesse como e com o que trabalharia.
Nesse meio tempo, entre a visita preliminar e a residência, não elaborei um projeto. Esperei retornar a Varsóvia para continuar pensando no que faria no início da residência. O primeiro mês coincidiu com um outro programa do A-I-R Laboratory, que reuniu curadores de diferentes países (Grécia, Líbano, Índia e Indonésia), e tive a oportunidade de acompanhar. A programação foi intensa, com debates, visitas a museus e galerias, bairros mais distantes do centro da cidade e encontros com artistas e ativistas. Nesse período, ainda recebia toda essa informação sem estar focado em resolver um problema, um trabalho. Naquele momento, tinha a ideia de me reconhecer na condição de não saber muito bem o que iria propor.
Evitei me orientar por algum trabalho anterior e tentar adaptá-lo ao contexto de Varsóvia, cedendo a automatismos. Tinha a preocupação de, pelo menos, minimizar meu olhar já condicionado para observar a cidade e estar de fato aberto para lidar com um contexto novo. Talvez por certa resistência à ideia já conhecida do artista na situação de estrangeiro — que supostamente teria uma percepção privilegiada. Não há uma percepção privilegiada ou desprivilegiada, apenas diferente. Uma possível ideia de vantagem me parece algo impositivo. E que, em certos casos, no contexto da arte, pode ser justificada apenas como uma situação protegida para o artista.
Apesar do pouco tempo de residência, decidi correr o risco de entender o que o próprio contexto poderia informar, o que a passagem pela cidade me traria. Por não haver uma metodologia pré-definida, tive o cuidado de organizar o processo. Acompanhei todas essas visitas, fotografei bastante e, ao final dos dias, tentava rememorar e anotar tudo que havia se destacado para mim. Nos horários livres da programação, fiz caminhadas de observação pela cidade. Com o tempo, percebi que, além da arquitetura e do desenho da cidade, o que me chamou bastante a atenção foram o discurso e os relatos sobre a cidade das pessoas que orientavam as visitas.
Ao reconhecer a impossibilidade desse ‘olhar privilegiado’, pensei que seria interessante justamente aproximar essas diferentes percepções de narrativa sobre a cidade — dos nativos e minhas enquanto estrangeiro. Isso me interessava por evitar simplesmente narrar meu modo de ver a cidade, e, ao mesmo tempo, não supunha que eu pudesse estar neutro naquela relação. Procurava lidar com percepções de outros na cidade na qual, de algum modo, eu me entendesse implicado.
Dos relatos como matéria de trabalho, passei a desenvolver frases ambíguas. Essas frases são formuladas a partir de um erro sintático que, na gramática, é denominado ‘anfibologia’ — quando a sentença permite mais de um sentido ou interpretação. Trata-se de um elemento (a anfibologia) que já tinha trabalhando de modo distinto na exposição Anfibologia, reciprocidad, no Museo El Eco, no México.
Não escrevo bem. É sempre uma tarefa que me exige muito esforço. Mas percebo que o modo de construção dessas frases se dá de maneira diferente de quando me disponho a escrever. Relaciono essa operação com um procedimento de pensar da arquitetura. Separo palavras, aproximo exemplos de construções sintáticas anfibológicas e vou estabelecendo relações entre termos, como relações entre espaços, produzindo passagens de duplo sentido entre elementos sintáticos (como os elementos espaciais).
É curioso perceber que muita informação na cidade me escapava devido às barreiras linguísticas. E é evidente que essa total impossibilidade de compreensão da língua polonesa (e de uma suposta percepção nativa) determinou a decisão de trabalhar com texto. E a língua trouxe uma situação que considero bem instigante: a confiança de trabalhar com um tradutor. Não tenho como conferir se a tradução está correta — assim como não há como conferir se os relatos que ouvi sobre a cidade estão ‘corretos’, no sentido de que uma maioria de pessoas concordaria.
Quando finalmente entendi que faria sentido trabalhar com as frases anfibológicas, foi necessário encontrar alguém que pudesse realizar a tradução para o polonês. E então a equipe da residência sugeriu que eu conversasse com um ótimo tradutor: Michał Lipszyc. Ele foi fundamental. Um colaborador sem o qual o trabalho não seria possível. Isso porque, depois de ter desenvolvido as frases em português, muitas não eram possíveis enquanto anfibologia no polonês. Ou seja, tivemos que pensar juntos, modificando algumas frases que eu já tinha elaborado em português, ou construindo novas frases conjuntamente, em português e polonês, simultaneamente.
É importante comentar que, no período entre visita preliminar e residência, fui convidado pela curadora da residência a realizar um trabalho que faria parte do programa de arte e espaço público do museu e seria exposto durante o período da residência. A proposta estabelecia utilizar 12 painéis para publicidade, que estão em diversos pontos da cidade — aproximadamente da dimensão de painéis de pontos de ônibus em São Paulo. Por isso, outra etapa da residência foi percorrer a cidade para conhecer os pontos disponíveis e escolhê-los. Todo esse processo foi realizado em um trabalho em conjunto com Ika Sienkiewicz-Nowacka, curadora da residência, que me convidou para essa intervenção.
Para compreender o modo como penso anfibologia, é preciso falar de ambivalência, que, enquanto conceito, fez sentido para mim ao ler o texto Brasil Diarreia, de Hélio Oiticica. Nesse texto, ele diz que reconhecer a ambivalência não é deixar de escolher uma posição, mas compreender a complexidade das coisas sem pensar em termos absolutos.
Obviamente, o texto foi marcante porque, de algum modo, me reconheci no que estava escrito. Ele clareou um pouco o que eu já estava tateando, mas ainda não entendia bem o que era. Tenho experimentado diferentes noções de ambivalência, como, por exemplo, a compreensão de algo como trabalho artístico ou não. Parece-me importante explorar a potência de um lugar indeterminado. Costumamos categorizar as coisas com a qual nos deparamos em nosso cotidiano de maneira praticamente automática. E acredito que enfrentar a indeterminação, um problema de categorização, ainda que por poucos instantes, pode oferecer potência para reelaborar um modo automático de percepção sobre as coisas. Esta é uma questão política.
Aliás, procuro estar sempre atento à dimensão política do meu trabalho. Há um texto, que é uma conversa entre Chantal Mouffe, filósofa que reflete sobre democracia e espaço público, e Rosalyn Deutsche, crítica de arte atenta às relações entre arte e esfera pública, em que as duas autoras se opõem ao termo arte política. Essa denominação pressupõe que exista uma arte que não é politica — e, para elas, toda arte é política, pois contribui para reproduzir ou desconstruir um sentido comum dado. Procuro estar atento a isso, e como consequência, consciente de que a forma não se separa do conteúdo. Uma vez que a política frequentemente é entendida apenas como o que se discute no âmbito institucional, como no congresso ou em assembleias, é urgente emergir outros sentidos da política e reconhecer que ela também acontece nos pequenos acordos cotidianos: ao comprar o jornal na esquina, ao participar de uma festa na rua, entre outros.”
Vitor Cesar em depoimento à PLATAFORMA:VB (Março 2016)