Bernardo José de Souza: Como vê a relação entre Brasil e os demais países da América Latina? Como a emergência do Brasil como grande economia no início do século 21 repercute nas relações culturais entre esses países?
Carlos Monroy: Na perspectiva dos outros países latino-americanos, o Brasil...
Bernardo José de Souza: Como vê a relação entre Brasil e os demais países da América Latina? Como a emergência do Brasil como grande economia no início do século 21 repercute nas relações culturais entre esses países?
Carlos Monroy: Na perspectiva dos outros países latino-americanos, o Brasil é o “gigante entorpecido” e não adormecido. Na América hispanica sabemos que o pais é enorme e que suas decisões econômicas e políticas afetam nossas economias e mercados, com efeitos proporcionais às relações econômicas e políticas construídas com o gigante ao lado. No entanto, essas relações, longe de ser ideais, como esboçadas em convênios como o Mercosul, são canalizadas na urgência do Brasil por aparecer, sobretudo às grandes potências, como a maior economia emergente do hemisfério.
O país está entorpecido ajudado pelos milhares que atravessam as fronteiras amazônicas de seus vizinhos. O gigante continua perseguindo os ideais de uma potência, vendo o progresso como crescimento no viés do capital. Essa postura, longe de lhe garantir melhorias, leva a criação de uma cortina de fumaça que permite a ele ignorar seus problemas internos. A Copa do Mundo e as Olimpíadas, são exemplos disso, demonstram a euforia daquele que prefere fazer a festa mesmo sem ter os meios.
Esta situação é absurdamente paradoxal e minha vinda ao Brasil como estudante faz parte dessa politica de expansão, própria das potencias, que oferece bolsas para estudantes do terceiro mundo. Essa cortina de fumaça tem gerado um desentendimento cultural entre o Brasil e a américa hispânica. Quando falamos sobre o Brasil, nos diferenciamos, e quando vocês falam sobre nós, também se diferenciam - vocês latinos e nós brasileiros. Não há no país uma identidade forjada a partir da coletividade com os países da América Latina e nem políticas culturais ou sociais que a construam, embora projetos como o Memorial da América Latina buscavam tal envolvimento. E o mais estranho é pensar que essa identidade latina se alarga a lugares não tão periféricos, como a Espanha, que por motivos coloniais se sentem parte dela. Sobretudo agora, depois que Donald Trumph desmereceu com juízos preconceituosos os latinos que moram nos Estados Unidos, falar dessa identidade se tornou moda, seja para defende-la ou desmerece-la. Mas o brasileiro nos exotiza e nos empacota igual as políticas coloniais ainda vigentes fazem com ele. O Brasil entorpecido reproduz discursos de progresso sem fazer sua devida antropofagia política e econômica, sem ver que o “alheio” que poderia verdadeiramente lhe pertencer está ao lado. As vezes me pergunto o que pensaria Oswald se estivesse vivo!
Como não existem pontes reais de união, a relação é um espelho de reflexos disformes. Em vez de nos reconhecermos a partir de nossos problemas comuns, terminamos por perceber nossas diferenças a partir de estereótipos que vemos no NETFLIX: Brasil é futebol e bundas; Bolívia, lamas, indígenas e insalubridade; Colômbia, narcos. Com a migração, voltam as perigosas identidades pré-fabricadas, que em vez de atacar os problemas reais, atacam os indivíduos. Mas o Brasil olha para o mundo, mede-se com um vara que sempre lhe deixa para atrás, e segue sem conseguir deixar de olhar seu umbigo...
BJS: O fenômeno da lambada (década de 1990), objeto de sua pesquisa, parte da apropriação brasileira de um ritmo boliviano, ignorando questões de copyright. Isso já indicaria uma postura brasileira imperialista na conformação do tabuleiro latino-americano?
CM: Não particularmente. Existem outros fenômenos de apropriação de recursos da qual se fala pouco no Brasil, mas substituamos a palavra apropriação por plágio. Mesmo que sutilmente diferentes, a apropriação é um gesto artístico próprio às linguagens das artes plásticas, já o plagio é o uso de material feito por outro afirmando que a criação foi sua.
A música Llorando se fue, que ficou mundialmente conhecida como Lambada, sofreu um processo milionário por plágio. Os Kjarkas, seus autores originais, que ainda hoje são o grupo musical andino mais famoso, fizeram sua melodia e letra em 1981. A melodia surgiu para afinar a zampoña de ventos andina, instrumento principal da música, e seu ritmo original é o saya, tradicional dos Yungas, território afro da Bolívia. A canção foi um sucesso imediato e foram feitas outras versões em ritmos de merengue, salsa, sendo a mais famosa a versão em cumbia do Cuarteto Continental, lançada em 1984. Em 1986, Marcia Ferreira, cantora e interlocutora radial brasileira, a regravou em ritmo de lambada, furor na época na Amazônia brasileira.
A lambada se configura como ritmo a partir de 1948, com a chegada da FM na Amazônia e Norte brasileiro, o que permitiu aos músicos da região entrarem em contato com os ritmos caribenhos dos vizinhos. Adicionaram a eles seus temperos amazônicos e o resultado, as guitarradas, com o lançamento do LP Lambada das quebradas, em 1978, passam a se chamar lambada ou umbigada, por seu jeito “caribenho”, latino de dançar. O ritmo viajou aos litorais do país, parando na Bahia, em especial em Trancoso e Porto Seguro, na época locais recônditos e de difícil aceso, que ferveram com a umbigada. Lá ela se transformou em uma dança “um pouco mais atrevida”, com um tempero de azeite de dendê que lhe caía perfeito.
Esse fenômeno cultural com fortes atrelamentos latino-americanos, começa então no Norte do Brasil, perpassando pelo Nordeste, para instaurar-se em 1987 na cena musical paulista. Mas o que torna a lambada global?
Em 1989 Olivier L’orsac, produtor e diretor cinematográfico francês, foi à Trancoso, ao que tudo indica, ficou aturdido com a lambada e comprou da produtora local os direitos de aproximadamente 500 produções do gênero. Quando retornou à França registrou tudo no nome de Chico de Oliveira, que havia conhecido nessa mesma viagem, e mudou o nome da canção Llorando se fué para Lambada. Lá formou a banda Kaoma, com músicos caribenhos e franceses, com Loalwa Braz na voz principal e dançarinos brasileiros. Patrocinado pela marca de refrigerante Orangina, ele gravou em 35 m.m cenas de um Brasil idílico em Tago Mago, uma pequena ilha ao nordeste de Ibiza. Subliminarmente, o videoclipe feito para lançar a lambada ao estrelato, foi gravado em um local repleto de cartazes e garrafas do refrigerante.
No fim de 1989 veio o boom da lambada com o clipe, que estourou primeiro na França e logo na Europa toda, fazendo um Tsunami cultural. A lambada ajudou a libertar a imagem do Brasil da memória da ditadura. Foram feitos filmes, novelas e vídeos que mostraram um país democrático, livre, sensual, sexual, turístico, inter-racial, praieiro e novíssimo. Ela se tornou a imagem do país por excelência, marcou uma geração e, me atreveria a afirmar, foi um fenômeno mais externo que interno. Lá fora, ela não é ritmo, é essa música específica, abrasile-francesada.
Mas a lambada foi uma faca de dois gumes nas políticas pós-coloniais culturais dos noventa. O movimento não foi um plágio do Brasil sobre a Bolívia, foi mais complexo do que isso. Ele se deu através de mãos francesas, europeias, que tomando um produto regional o higienizaram, exotizaram e colonizaram. O vídeo, por mais que se esforce para mostrar a realidade do que poderia ser um povoado do nordeste do Brasil, simplifica as relações dos corpos embalados em um ritmo frenético de uma musicalização alheia. Basta escutar a versão da Marcia e a de Kaoma para entender como os arranjos musicais foram modificados para torná-los mais accessíveis ao ouvido europeu. Sem contar as estratégias cinematográficas como o uso de crianças para que o mundo pudesse identificar-se, comprar Orangina e se jogar na dança: se Roberto e Chica que tem 10 anos podem dançar desse jeito, você também pode!
E por trás de toda a cortina de fumaça? A Bolívia e o Brasil! Os Kjarkas e a Marcia ganharam o processo nos tribunais, mas perderam outras coisas talvez mais valiosas, como o reconhecimento da música como uma obra prima da cultura boliviana. Até Don Omar e J-lo, cantores latinos que fizeram versões mais recentes de Llorando se fue, apesar de dar os créditos, destacam em seus vídeos a referência a brasilidade. Sem Kaoma a lambada não teria estourado, mas não esqueçamos que quando falamos de música também falamos de artistas, talvez a posição mais vulnerável no mercado da cultura. Loalwa foi vítima, Chico, Roberta, Marilei, Didi e todos os outros também. Vítimas da higienização cultural colonial, mas ganhadores de uma experiência de vida.
Neste caso, é difícil de falar de um imperialismo do Brasil. Talvez se pensarmos na utilização da lambada para outros fins - trazer turismo às praias, vender a imagem do país do sexo e da democracia, sem problemas raciais - poderíamos chegar a tocar nessa conformação do novo tabuleiro latino-americano que você aponta. Afinal, a questão do império é estar de frente pra uns e de costas pra outros.
BJS: O surgimento da lambada sinaliza um fenômeno da indústria fonográfica que se desdobraria em uma série de outras controversas manifestações musicais como a dança da garrafa e o Funk. Dentre os efeitos colaterais desses ritmos fortemente enraizados na cultura popular brasileira, está uma evidente sexualização do corpo mediante um apelo midiático que desconhece fronteiras de idade ou classe. Como você analisa este cenário?
CM: Sou amante de todos os fenômenos mediáticos culturais populares latino-americanos e mundiais: da lambada ao Funk carioca. A salsa urbana, o choque colombiano, o tribal mexicano, o kuduro angolano, o boné braker nova yorkino e, mais recentemente, as danças folclóricas, como os caporales bolivianos, entre outros. Minha pesquisa na performance está se estendendo a esse material físico dançante que possuo desde criança.
Nessas manifestações existem dois princípios que me interessam: o uso do corpo como elemento contra cultural e de oposição; a libertação de preceitos corporais sexuais e morais próprios a cada cultura que os prática. Normalmente essas manifestações culturais começam no contexto popular, onde vão se conformando através da experiência dos corpos que simplesmente querem se divertir e expressar, em um movimento que desalinha a homogeneização e rigidez dos corpos próprios da massa e do capital. Aí nasce a libertação. Pensemos na origem do tango, dançado entre marinheiros homens, que depois seria imitada por prostitutas; ou nas libertadoras piadas das letras do axé nos anos noventa “cuidado com o cabo da vassoura é pior do que cenoura”. A sexualização nasce nessa contra cultura. Me encanta pensar que o choque colombiano, apesar da sexualidade literal, pode ser praticado por duas meninas ou dois meninos.
A dança implica em algum nível de sexualização do corpo, pois evidencia instintos e comportamentos inerentes a nós, humanos, nos jogos de sedução: atração, charme, copula, gozo. No apelo midiático é que temos um problema: a sexualização vira o pacote usado para manipular a grande mídia e o grande público. Aí que temos crianças dançando e cantando coisas “inapropriadas” para a idade. Mas melhor elas repetirem isso como brincadeira do corpo infantil do que crianças sem dançar, nem cantar... Isso faz parte da higienização e branqueamento moral do corpo das crianças e dos idosos. A criança não deve ter acesso ao sexo e o corpo idoso não deve ter sexo...coisa bizarra se pensarmos que somos seres sexuados desde que nascemos até que morremos. Temos que pensar em como o capital empacota e vende os modos contra-culturais como símbolos de identidade. Essa situação me lembra de uma coisa que escrevi a respeito das artes plásticas: o que fazer quando a irreverencia e a postura contracultural do artista vira parte do pacote? O que fazer quando o artista deixa de “ser” para ser produto tão empacotado quanto os movimentos culturais que descrevemos?
BJS: Como a questão dos direitos autorais reverbera em seu trabalho?
CM: Interessam-me as complicações da apropriação como ferramenta e metodologia das artes. Em meu mestrado, tentei criar o conceito da re-formance. Não acho necessário produzir mais imagens, mas recontextualizá-las, reusá-las. Tudo que está no museu é uma apropriação histórica e cultural de símbolos e discursos, que recoloca no escopo problemas como o novo tabuleiro latino-americano, a postura pseudocolonial do Brasil, a sexualização dos corpos. Tento usar imagens que estão aí não para mostrar o Meu Brasil Brasileiro dos 90, mas para evidenciar meu Brasil Boliviano de 2015.
Carlos Monroy em entrevista ao curador Bernardo José de Souza, membro da Comissão Curatorial do 19º Festival (julho 2015)
- Dados técnicos
Llorando se foi. O museu da lambada. In Memoriam de
Francisco “Chico” Oliveira, 2015 | Instalação
Carlos Monroy
Lambada (Official Video) (1989) | Kaoma
Plagio La Lambada, de Autoria los Kjarkas
LOS KJARKAS (1981) THIS IS WHERE LAMBADA & ON THE FLOOR (J-LO) COME FROM (2010) | Bolivian MTV
Plagarism by Jennifer Lopez (2011)
- Ações VB
- 19º Festival
- Outras conexões
El plagio de la lambada (El País, out. 1989). [esp]
Donald Trump causa indignação entre latinos nos EUA (Revista Exame, jul. 2015). [pt]
- Anexos
Referências para desenvolvimento da obra
Argumentos do artista para desenvolvimento do projeto