Territórios do sul: Experiências, cidades e fronteiras

Sabrina Moura
publicado em 29.07.2013
última atualização 27.04.2016

Em resposta às vanguardas europeias do período entreguerras, o artista uruguaio Joaquín Torres García pensouLa escuela del sur: “Não deve existir o norte para nós, mas, somente em oposição ao nosso Sul. Por isso, agora colocamos o mapa ao contrário[...]A ponta da América,estendendo-se, sinaliza insistentemente o sul, nosso norte.” Em 1943, ele inverteu, no desenho de um mapa, a posição dos...


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Em resposta às vanguardas europeias do período entreguerras, o artista uruguaio Joaquín Torres García pensou La escuela del sur: “Não deve existir o norte para nós, mas, somente em oposição ao nosso Sul. Por isso, agora colocamos o mapa ao contrário [...] A ponta da América, estendendo-se, sinaliza insistentemente o sul, nosso norte.” Em 1943, ele inverteu, no desenho de um mapa, a posição dos países americanos cortados pelas linhas do Equador e do Trópico de Capricórnio. No topo, estava o extremo sul da América.

Deslocar linhas imaginárias, redesenhar territórios, reorientar pontos cardeais. Na prática de muitos artistas, as incursões pelo campo cartográfico exprimem não só um “contra-discurso”, mas também instauram visões renovadas do mundo.

Em diálogo com a obra de Torres Garcia, a artista Clarissa Tossin enuncia, em Unmapping the World (2011), o quanto as projeções cartográficas que conhecemos vão além da representação objetiva do espaço. Em seus contornos, elas trazem questões de ordem ideológica ou política, como a noção do centro associada ao norte/oeste do globo. “Meu interesse reside em subverter esse formato e questionar a naturalização das ideias propagadas por essas representações”, explica Clarissa.

“Não há mapa que seja neutro”, nos lembra o sociólogo português Boaventura de Souza Santos. Se o mapa físico examina topografias, e o político demarca as fronteiras administrativas de um território, as formas de cartografia insurgentes se abrem para uma multiplicidade de processos em seus contornos. Falar do "sul" significa, nesse caso, questionar a neutralidade dos territórios que havíamos integrado como austrais e pensar nas implicações políticas, sociais e simbólicas que fundam suas imagens.

Para se esboçar outros “mapas-múndi” é preciso dar vazão às cartografias específicas a cada lugar, cada corpo. “O mundo é o que se vê de onde se está”, dizia Milton Santos, e apenas a validação da nossa experiência como forma de conhecê-lo pode ensinar, por exemplo, que “um rio representa, além de um corpo fluvial, um ser sagrado”.

Brahmaputra é o rio que divide a região de Assam da Índia, entre Norte e Sul. Único rio indiano com um nome masculino (filho de Brahma em sânscrito), o Brahmaputra abriga em sua margem sul o templo de Sukreswar, dedicado a Shiva. Marcada pelo pluralismo étnico e religioso, a região tem sido campo de conflitos separatistas há décadas. 

"Apesar desses conflitos, o povo de Assam ainda consegue viver em paz e usa o Brahmaputra como fonte de recursos naturais. Ele é um melting pot que permite a troca de informações, a realização de transações comerciais e uma mobilização cultural estratégica para as pessoas que estão diretamente as ligadas ao rio", afirma o artista indonésio Mahadikha Yudha sobre o tema abordado em seu vídeo Suara Putra Brahma (2010). 

Se o cruzamento do Brahmaputra remete à escala humana na experiência das fronteiras, é também pelo corpo que Lais Myrrha convoca, em Teoria das Bordas, à interpenetração dos espaços limítrofes. Aqui, a experiência de dissolução das margens ocorre ao se caminhar pela obra fazendo com que sua geometria "pouco a pouco se desmanche e suas bordas [em branco e negro] se diluam em um cinza escuro". Esses movimentos extrapolam o desarranjo das formas no espaço: "Podemos nos indagar sobre quais bordas a obra se refere. Trata-se de uma construção meramente geométrica ou aponta para outras instâncias? Poderia ser vista como uma metáfora? De que?”, questiona Lais.

A revisão da noção objetiva de mapa também é relevante para o entendimento do tecido urbano. Em tempos de reconfiguração contínua das mega-cidades, Nelson Brissac aponta: “Como cartografar essa geometria de atividades econômicas em transição, o uso indefinido do solo, a economia informal em constante movimento e as mudanças bruscas de populações?”

Resistências, ocupações e disputas dão novos horizontes às noções de pertencimento nas cidades. A dissolução das polarizações entre centro e margem, espaço público e privado, evocam a potência dos redesenhos do espaço urbano contemporâneo — dinâmicas tratadas por muitas obras da mostra Panoramas do Sul (2013).

Artistas como Francisco Dantas, Morgan Wong, Ip Yuk-Yiu ou Tatewaki Nio abordam a destruição e apagamento nos centros urbanos, buscando relacionar seus contextos locais aos fenômenos da globalização. Em seu livro Chai-Na, Otília Arantes comenta esse processo nas cidades chinesas: "A máxima de Mao Tsé-Tung — 'sem destruir não se constrói [...]' — que servira de álibi para a desurbanização do pais, ressuscitou agora com sinal trocado: para a reconquista das cidades e criação de novas [...], numa espécie de avalanche de proporções ciclópicas [...] Que mega-eventos como Olimpíadas, Feiras Internacionais sirvam de pretexto não chega a ser uma novidade, não fosse a escala e a rapidez com que tal criação-destrutiva se processa."

Em 2010, dois anos após os jogos olímpicos, a desmesura da especulação imobiliária em Pequim continuava sendo sentida; à exemplo dos rumores sobre a destruição de algumas zonas da cidade que, segundo Morgan Wong, revelam “os efeitos colaterais do rápido crescimento da economia chinesa [...] – um fenômeno que pode ser observado no mundo inteiro.” Em Demolishing Rumor, Wong nos permite entender que, embora no hemisfério norte, Pequim está mais próxima às cidades brasileiras do que havíamos imaginado. 

Mapeamento realizado como parte da pesquisa para elaboração do encontro Territórios do sul: Experiências, cidades e fronteiras, apresentado no 18° Festival de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil. Com a presença de Lais Myrrha, Morgan Wong, Mahadika Yudha, Akram Zaatari e mediação de Moacir dos Anjos. (novembro 2013)


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Sabrina Moura


(Natal, Brasil, 1979) Curadora, pesquisadora e historiadora, mestre em direção de projetos culturais pela Universidade de Paris III – Sorbonne Nouvelle. Curadora dos Programas Públicos do 18º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (2013)

 

Outras conexões

La Escuela del Sur. El taller Torres-García y su legado, exposição de Joaquín Torres-García (Museo Reina Sofia, Madri, Espanha, 1991). [esp]

 

Anais do Encontro Internacional para um Pensamento do Sul (SESC, Rio de Janeiro, Brasil, 2011). [pt]

 

Pour une pensée du sud, por Edgar Morin (Identités méditerranéennes et Francophoniefrancophonie, Synergies Monde Méditerranéen, 2010). [fr]

 

Chai-Na (2011), por Otília Beatriz Fiori Arantes. [pt]

 

O território em tempos de globalização, por Rogério Haesbaert e Ester Limonad (Revista Eletrônica de Ciências Sociais Aplicadas, Niterói, Brasil, 2007). [pt]

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desenho ; fronteira; conhecimento; bordas;

Espaços de transformação: Epistemologias do Sul | Boaventura de Sousa Santos (2012)

O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos fala, em palestra na Tate Modern (2012), sobre a necessidade de validação das epistemologias do Sul para abarcar a multiplicidade de conhecimentos que integram a experiência do homem no mundo. [eng]

 

A River's Story: The Quest for the Brahmaputra | Sanjoy Hazarika e Jahnu Barua

Encontro com Milton Santos: O mundo global visto do lado de cá (2006) Sílvio Tendler

24 CITY (2008) | Jia Zhang Ke

O filme de Jia Zhang Ke inicia a partir do momento em que uma fábrica estatal, na cidade de Chendu (China), é demolida para dar lugar ao complexo de apartamentos de luxo conhecido como 24 City

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