A Cidade Como Meio

Germano Dushá
publicado em 07.12.2013
última atualização 27.04.2016

É possível apontar o uso do espaço público e as discussões sobre a cidade como posturas fundamentais para as transformações que marcaram as artes visuais culminando no que entendemos como práticas contemporâneas. Essa percepção em relação ao fazer artístico - que naturalmente tangencia disciplinas como arquitetura e urbanismo - inaugurou novas preocupações e possibilidades em um processo...


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É possível apontar o uso do espaço público e as discussões sobre a cidade como posturas fundamentais para as transformações que marcaram as artes visuais culminando no que entendemos como práticas contemporâneas. Essa percepção em relação ao fazer artístico - que naturalmente tangencia disciplinas como arquitetura e urbanismo - inaugurou novas preocupações e possibilidades em um processo conduzido por ampla expansão dos enquadramentos e rompimentos definitivos de certos condicionamentos que valeram até então.

Repensar os paradigmas e valores vigentes, os temas e objetos que merecem importância, o campo institucional isolado e asséptico das galerias e museus como modelo expositivo adequado; trabalhar com novas e associadas mídias e suportes; e a vontade de se lançar em contato direto com o público, são algumas das características e posturas que permearam o trabalho dos artistas que optaram por este caminho. Ainda corrente e a pleno vapor, essas investigações extrapolam a área da metáfora e representação para se engajar com elementos, situações e experiências reais. Seja através de performances e ações diretas, ou da documentação de narrativas e eventos cotidianos, são obras que operam sempre em sentido transformador, de modo que só se concretizam numa arena político-sócio-cultural, em que podem discutir radicalmente os territórios da vida comum.

Em Hachuras em movimento, de Tales Bedeschi, enxergamos fortemente esta ideia. O trabalho começa na observação de um fenômeno corriqueiro: os desenhos formados no chão pelas sombras dos corpos que constituem o cenário urbano. Dessa maneira, o artista assume antes a posição de espectador das figuras projetadas por portões, árvores, cobogós, etc. para depois dialogar com elas diretamente, trabalhando em coautoria com a própria cidade. Segundo seu depoimento, "a obra busca intervir na função de algo, interromper a atenção do indivíduo que passa, por meio da inscrição de um elemento extraordinário em um contexto ordinário. Essa intervenção consiste em uma operação muito simples: duplicar uma sombra." Com o passar do tempo, as sombras se deslocam e revelam pinturas formadas por linhas paralelas, ou verdadeiras hachuras. O discurso político da obra se apresenta na medida em que reconfigura possibilidades e altera a função e a visibilidade de um detalhe antes trivial. A sombra é transformada em linha, o chão em uma plataforma de eventos plásticos, e o pedestre em espectador.

Da mesma forma, existe em Escudos, de Amanda Melo, uma ligação entre a obra e o meio em que se insere. As intervenções escultóricas de sal são instaladas para agir como se houvesse um estado de descontrole de erosão. De caráter efêmero, o trabalho propõe questionamentos a respeito das consequências de se ter o vazamento de água - situação de difícil controle - e a presença do sal - elemento corrosivo - alterando os materiais à sua volta. Consequentemente, aborda a questão das infiltrações, contaminações e deterioração das construções humanas. "A presença dos escudos nos permite observar diferentemente o espaço arquitetônico, ao mesmo tempo em que se inverte a noção de perenidade imposta pelo espaço construído", reflete Melo sobre o posicionamento crítico da obra.

Se nestas obras existe a intenção de intervir ativamente em âmbito público, no sentido de romper expectativas e balançar noções naturalizadas, na performance All the Others o artista Hou Chien Cheng atua pelo silêncio de uma resignação. Com o objetivo de criar um diálogo reflexivo que discuta as fronteiras entre as experiências individuais e coletivas, se posiciona em pé e imóvel na escada de um edifício movimentado e permanece parado enquanto observa diversos transeuntes que não se dão conta de sua presença. Por meio deste gesto de absoluta simplicidade, mas que o conecta profundamente ao universo que o cerca, trata de temas como status social, identidade, invisibilidade e representação; explicita o sistema que elege o que é ou não relevante dentro do espectro da vida em comunidade; e fala, consequentemente, sobre solidão, isolamento e indiferença. 

São trabalhos que dispensam a segurança de dispositivos e recintos responsáveis por separar a arte do mundo. Nesse sentido, partem da experiência individual dos artistas com os elementos das cidades com as quais se relacionam e incorporaram diretamente em sua formação circunstâncias do plano compartilhado, de maneira que acabam por se dissolver na trama urbana.

Nas obras Lago Onega n. 8, de Jacinto Astiazarán; Escultura do Inconsciente, de Tatewaki Nio; e Espécimens II, de Chico Dantas, o que percebemos são situações e contradições da cidade como objetos de pesquisa e reflexão para trabalhos em que há a manipulação da fotografia e do vídeo. Os artistas conduzem, portanto, a discussão com outras linguagens e novas associações, mas tangenciam com igual pungência questões sobre zonas de uso comum, transformações arquitetônicas, modernidade, identidade, invisibilidade e esquecimento; e refletem sobre os limites entre esfera privada e pública, individual e coletiva.

Astiazarán documenta em seu trabalho o surgimento de um edifício residencial em um bairro adjacente à Cidade do México cuja estrutura é baseada em um dos mais emblemáticos ícones dos padrões norte-americanos: a casa com estrutura em forma de A, facilmente encontrada nos chamados subúrbios. Ao fazê-lo, revela a ideologia de quem a constrói. A história nos faz tomar conhecimento de um empreendimento que se apropria deliberadamente de um arquétipo estabelecido para o reformular e o inserir em um contexto sociocultural diferente.  Nesse processo coloca no centro da discussão a perspectiva de um sujeito que faz valer sua opinião através do espetáculo da construção civil. Logo, discute as aspirações e experiências culturais e arquitetônicas individuais diante do desenvolvimento urbano.

No trato de matérias semelhantes pela via do desmanche e abandono, a série de fotografias Escultura do Inconsciente registra paisagens urbanas marcadas pelo signo da ruína, que vivem em contraste com o que é tido como importante e desejável. Se por um lado essas imagens se apresentam apagadas em sua obsolescência, estão sempre ensejando a vinda do novo, busca fundamental do acelerado projeto civilizatório urbanizador. O artista capta a passagem do tempo e, portanto, soma imaginações fictícias de passado e futuro aos aspectos físicos reais que encontra. Em Espéciemens II, Dantas dá um passo a mais neste exercício ao inserir cenas produzidas em estúdio ao registro documental. Adiciona cenas do corpo de um homem em condição de rua aos registros audiovisuais de uma movimentada avenida, e constrói dessa forma um ambiente de ressignificações em que "emergem comportamentos ficcionais atribuídos a coisas que não têm sentimentos, como a indiferença das luzes dos automóveis que descrevem o desconforto da noite". Assim, questiona os mecanismos de exclusão que permeiam a cidade e a consequente invisibilidade social que acomete parte de seus habitantes.

São trabalhos frutos de uma prática relacional dos artistas com as figuras e conjunturas urbanas que participam, de algum modo, de seu cotidiano. Se inclinam com vigor sobre o espaço em que se vive junto; examinam suas tensões; redefinem o que nos é habitualmente sensível; e intervêm na percepção dos tecidos que formam a experiência comum.

(fevereiro 2015)

Mapeamento realizado por Germano Dushá a partir da parceria entre a Associação Cultural Videobrasil e Fabio Cypriano, professor do curso de pós graduação Arte: Crítica e Curadoria, na PUC SP (dezembro de 2013).


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Germano Dushá


(Serra dos Carajás - PA, Brasil, 1989) Formado pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas - Direito SP, e pós-graduando em Arte: Crítica e Curadoria pela PUC-SP. É cofundador e gestor do Coletor, plataforma itinerante e independente voltada para o encontro e desenvolvimento de práticas artísticas contemporâneas.

 

Outras conexões

One Place After Another. Site-specific art and locational identity, por Miwon Kwon (Londres: The MIT Press, 2002). [eng]

 

Depoimento do artista Cildo Meirelles sobre sua obra Inserções em circuitos ideológicos (1970) retirado de Cildo Meireles (FUNARTE. Rio de Janeiro, 1981). [pt]

 

A arte na cidade: o alcance da publicização, por Tatiana Ferraz (Fórum Permanente, Periódico Permanente, v. 2, n. 3, 2013)  [pt]

 

Sobre Arte Pública, por Carla Zaccagnini (Fórum Permanente, Revista Número, n. 6, 2013) [pt]

 

Arte/Cidade – Um balanço, por Nelson Brissac (Ars 7, ECAUSP). [pt]

 

Arte pública: um “corpo estranho” na cidade, por Guilherme Wisnik (CONTINUUM, out. 2007). [pt]

 

Margem errante: uma discussão sobre práticas espaciais contemporâneas, por Carolina Tonetti (Fórum Permanente, Periódico Permanente, v.2, n.1). [pt]

Tags
arquitetura; espaço; cidade; identidade; cotidiano; olhar;

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