O infinito entre Geometria Descritiva e The End of Time

Sara Giannini
publicado em 26.11.2013
última atualização 27.04.2016

O convite para escrever ummapeamento pessoal sobreos trabalhos expostos na recém-criada Plataforma VBsugere um interessante paralelismo entre o mapeamento e a curadoria. Mas o que estas operações têm em comum?

Segundo o geógrafo italiano e analista cultural Franco Farinelli, as categorias ocidentais modernasde espaço e tempo são resultado da substituição do mundo por sua representação no mapa:...


Leia mais +

O convite para escrever um mapeamento pessoal sobre os trabalhos expostos na recém-criada Plataforma VB sugere um interessante paralelismo entre o mapeamento e a curadoria. Mas o que estas operações têm em comum?

Segundo o geógrafo italiano e analista cultural Franco Farinelli, as categorias ocidentais modernas de espaço e tempo são resultado da substituição do mundo por sua representação no mapa: uma superfície que corresponde aos princípios do sistema de coordenadas cartesianas. O espaço cartesiano/euclidiano postulado pelo mapa tem como base três pré-requisitos: continuidade, homogeneidade e isotropia (uniformidade em todas as orientações). 

O espaço achatado em que representamos e experienciamos o mundo oferece uma plataforma artificial na qual corpos funcionam de acordo com regras que não são terrenas, desempenhando assim um movimento linear. O mapa renderiza o tempo e espaço, dois princípios abstratos e perenes que não levam em conta a experiência, diversidade, duração ou transformação.

Olhando a curadoria mais de perto, parece que quando um curador seleciona uma obra de arte específica, ele(a) cria suspensões momentâneas, reduções de complexidade, de caminhos passados e futuros. A curadoria descarta o mundo e o tempo exterior para um espaço fictício homogêneo. Transforma individualidades irredutíveis em redutíveis. O trabalho do curador é o de neutralizar as dissemelhanças? O de uma conjunção? 

Desconfiado da percepção, Descartes dedicou seu pensamento à dedução, vista como a única forma de alcançar o conhecimento e a verdade. Liberado do corpo e dos fenômenos mundanos, Descartes encontrou abrigo nos princípios pré-concebidos da mente.

Ainda de acordo com as coordenadas mentais da cartografia, podemos, talvez, nos perguntar se a prática da curadoria é uma agência que assimila ('permite similar') objetos de arte diferentes ou virtualmente indiferentes e produz um 'corpo de trabalho' coerente, todos unidos sob o guarda-chuva da declaração teórica de exposição.

Como minha contribuição para a Plataforma VB, gostaria de fazer uma reflexão crítica sobre a prática curatorial, convidando o usuário/leitor/espectador a desdobrar pertences e conotações, explorando, assim, a coleção de forma disjuntiva e errática. Diferente do mapeamento, a forma-jornada oferece um conjunto de possibilidades e movimentos que contemplam a duração e o processo, incluindo a transformação da definição e oportunidade sobre a predeterminação.

Vamos nos reunir e dispersar na Geometria Descritiva de Luiz Roque. O vídeo mostra um terreno natural com morros e árvores através de um superfície prato de vidro quadrado. Uma esfera de metal é jogada na direção do vidro e o desintegra. O espectador é testemunha de um ballet epistemológico e metafísico entre a esfera e o quadrado, duas figuras arquetípicas representando o mundo como (talvez) o conhecemos.  

A geometria descritiva é a disciplina que regula a representação de objetos tridimensionais em duas dimensões. Como o mapeamento, ela se baseia em redução e projeção. No vídeo de Roque, a transparência do vidro quadrado é a ferramenta que nos permite percer o mundo através de uma moldura aparentemente neutra. É a tela, o mapa, a imagem, o cogito cartesiano que rege nossa habilidade de ver e, por fim, saber.

Mas a Geometria Descritiva de Roque insere um elemento de perturbação. A esfera não pode ser incorporada ao sistema, então o destrói. A esfera se move, progride e acaba por destruir o vidro. A trajetória da bola: 

“nos faz parar de pensar no espaço subentendido pelo movimento e nos concentra exclusivamente no movimento em si, no ato da tensão ou extensão, ou, para simplificar, na pura mobilidade. Assim nos leva a uma imagem mais precisa de nosso desenvolvimento no período.”

(tradução livre de Henry Bergson, The Creative Mind: An Introduction to Metaphysics)

Outro trabalho na coleção atrai nossa atenção: The End of Time, de Akraam Zatari. Esta peça é uma coreografia entre dois homens, dois amantes que se encontram, se afastam, e se encontram novamente. Após o final da dança, eles se despem. Os traços que restam constituem o início da memória, uma metáfora para a 'museificação' da vida e da cultura, uma forma de ser eterna, ou melhor, o ser fora dos limites do tempo.

O final é um dispositivo retórico e narrativo que também parte do desejo humano de clareza e definição. O sentimento de que um final tem estruturado a nossa concepção da vida como um todo, não somente na ontológica oposição entre a vida e a morte, mas também na forma em que agimos, narramos e pensamos. O fim postula a linearidade absoluta e temporal no (novamente) rígido espaço do sistema de coordenadas cartesianas.

Mas o final também pode ser visto como barreira, uma forma de espaço relacional na qual cada elemento está, por sua vez, dentro e fora. Ela se abre para um terceiro estado sem nome que não pertence a ninguém e dura para sempre. Esta 'lógica de terceiro' faz os opostos tremerem e as categorias do mapeador ficarem confusas. Em uma viagem do A ao B, há sempre um X indeterminado que encontramos e que nos leva a outro lugar e de lá, a mais um. 

Gostaria, portanto, que todos considerassem o infinito entre a geometria descritiva e o fim dos tempos.

(dezembro 2013)


Reduzir texto -

Sara Giannini


Curadora e pesquisadora independente, atualmente vive em Amsterdam. Pesquisadora, curadora e editora do projeto ZKM "Global Art and the Museum" desde 2010. Doutoranda pela Universidade de Leiden, pesquisa sobre o "meta-enciclopedismo" das exposições de arte contemporânea. Coordena projetos artísticos experimentais e participativos na rede internacional Vision Forum. Bacharel em Estudos Culturais pela Universidade de Ferrara (TI) (2007) e mestre em semiótica pela Universidade de Bologna (TI) (2010). Contribuiu em vários catálogos de exposições e revistas.

 

Outras conexões

Geografia. Un'introduzione ai modelli del mondo (2003), por Franco Farinelli. [it]

O discurso do Método (1637), por René Descartes. [pt]

O pensamento e o Movente (La Pensée et le mouvant) (1934), por Henry Bergson. [pt]

Mil platôs (1980), por Gilles Deleuze e Félix Guattari. [pt]

Sobre a lógia ca terceiridade, os Collected Papers (1958) de Charles Sanders Peirce. [eng]

Tags
curadoria; cartografia; geometria; espaço; percepção; tempo;

The Perfect Human (1967) | Jorgen Leth

 

 

Comentários