Antigas e novas disputas

Ruy Luduvice
publicado em 26.10.2013
última atualização 27.04.2016

Os relatos dos integrantes da TVDO e da Olhar Eletrônico tornam presente uma situação muito distante da atual. É com nostalgia que falam das dificuldades de acesso, produção e divulgação de seus vídeos. Nada mais distinto de nossa vivência contemporânea, com sua profusão de imagens e ampla rede de canais de comunicação e divulgação. No entanto, eles revelam o quanto o avanço tecnológico...


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Os relatos dos integrantes da TVDO e da Olhar Eletrônico tornam presente uma situação muito distante da atual. É com nostalgia que falam das dificuldades de acesso, produção e divulgação de seus vídeos. Nada mais distinto de nossa vivência contemporânea, com sua profusão de imagens e ampla rede de canais de comunicação e divulgação. No entanto, eles revelam o quanto o avanço tecnológico provocou ainda poucas mudanças na nossa relação com as imagens digitais e seu desenvolvimento ambivalente, que caminha tanto no sentido de uma relação crítica quanto numa rendição total à indústria cultural.

Para a TVDO, tratava-se de buscar o avesso do que era feito até então, na continuidade de experiências como as de Chacrinha e Glauber Rocha no programa Abertura, do começo dos anos setenta. Outra grande fonte de inspiração era o diretor José Celso Martinez Corrêa, que trabalhava com super-8 no teatro Oficina.

Isso fica claro em Caderneta de Campo, que mostra a luta do grupo Uzyna Uzona para sobreviver às pressões do mercado imobiliário. O vídeo apresenta depoimentos dos membros do grupo, tomados como verdadeiros relatos das trincheiras e barricadas, e cenas de confronto e violência policial em meios urbanos.

Obras como essa eram tratadas tanto por Zé Celso quanto pelos integrantes da TVDO como estratégias de combate. Em Frau o diretor declara: “Estamos numa situação de guerra cultural!” Neste contexto buscava-se a conquista de espaço e possibilidades ampliadas de expressão. O Festival Videobrasil, nesse sentido, teria sido um meio para essas conquistas, junto com o grafite, praticado no mesmo período por Tadeu Jungle e Walter Silveira, quando escreviam poemas pelos muros de São Paulo.

O confronto com uma televisão autoritária se dava, portanto, no próprio material, no aparato técnico, numa quebra de hierarquia na qualificação das imagens como adequadas ou inadequadas, como próprias ou impróprias à difusão em rede nacional. Tal posição arbitrária e autoritária também foi objeto de sátira em Heróis da Decadên(s)ia, quando Jungle, muito bem vestido, intercepta passantes nas ruas de São Paulo como fazem os repórteres de televisão. Ao invés de colher depoimentos, ele posa ao lado do ‘popular’ para as câmeras, explicitando a ação de constrangimento e assédio a que são submetidos os personagens das matérias telejornalísticas.     

O oposto dessa relação entre imagem eletrônica e espectador foi buscado pelo grupo no programa Fábrica do Som,  dirigido por Pedro Viera, também integrante da TVDO, e apresentado por Jungle, no SESC Pompeia. O programa almejava o rompimento com a transposição do palco italiano para a televisão. O abandono da hierarquia entre apresentador e expectador permitia que todos fossem considerados atuantes e autores do programa. 

Vieira lembra que a experiência das multidões, proibidas pelo regime militar, eram novidade nos anos 1980. Esse fenômeno foi explorado em sua ambivalência no seu documentário Duelo dos Deuses, que registra o gigantesco evento da Igreja Universal do Reino de Deus, de Edir Macedo, realizado no estádio do Pacaembu, em 1988. Ao lado dos indícios de emancipação que as multidões traziam, abria-se espaço para a sombria experiência da massificação e da manipulação ideológica. Essa nova “ética protestante” substituía a austeridade calvinista pelo frenesi consumista e pela auto-complacência hedonista e imediatista, onde o mistério da santíssima trindade revela-se num automóvel e a aposta da fé é atestada por um tubo de ketchup. Tudo isso, é claro, proporcionado e intermediado pela difusão da imagem eletrônica e endossado pela política de concessão de canais.

Já a produtora Olhar Eletrônico conseguiu maior êxito em sua inserção na televisão a partir das portas abertas por Goulart de Andrade. No caso do grupo, não se tratava tanto de uma operação formal, como feita pela TVDO (embora ela também existisse), mas de mostrar os bastidores da TV, revelar como eram feitos os programas. Por outro lado, a ideia de encenação e de paródia dos gêneros tradicionais da grade televisiva - sobretudo os telejornais - eram essenciais para o grupo. Como lembra Fernando Meirelles, essa estratégia tornou-se padrão em grandes emissoras, como a própria Globo, que exibe a redação de seus telejornais como cenário.

Mas se é possível encontrar traços de Ernesto Varela (personagem criado pela Olhar Eletrônico) em programas humorísticos contemporâneos, o desvelamento da confecção da imagem e a busca por uma relação crítica da audiência dificilmente pode ser encontrada hoje. Isso demonstra como essa assimilação levou à redução da radicalidade inicial. Varela na Copa, por exemplo, denuncia pelo humor, o ocultamento de importantes eventos políticos no país já que atenção da mídia estava voltada à Copa do Mundo no México.

Do Outro Lado da sua Casa, de Marcelo Machado, concede ao personagem da reportagem não só o protagonismo da história, como a condução das entrevistas. O arguto morador de rua explicita a existência física do repórter, do olho que o vê, ao aludir ao corpo do entrevistador: “Quantos quilos o senhor pesa?" – pergunta  – “Eu peso 72” – responde – “Então você tem que carregar 72 quilos de você 24 horas por dia”. 

É compreensível que a linguagem do telejornalismo tenha sido alvo constante de paródia e crítica nas obras dos dois grupos, uma que é apresentada como verdade absoluta sobre a realidade nacional. E ainda não é assim?  

É verdade que assistimos a um relativo declínio do poder da televisão – ou pelo menos da hegemonia dos grandes impérios da telecomunicação –, o que talvez tornaria anacrônico o antigo desejo dessas produtoras de modificar a grade televisiva.  Mas a disputa se transferiu para outros campos, como a internet ou as inúmeras telas com as quais somos obrigados a lidar em quase todos os momentos de nossas vidas.

Se assim for, a tarefa de que se incumbiram essa geração de produtores independentes ainda se encontra por fazer.

Mapeamento realizado por Ruy Luduvice, a partir do foco Contra-TV: Práticas Experimentais do Vídeo nos Anos 1980, composto pelos encontros Tudo pode ser um programa de televisão e Invadir a programação, apresentados durante do 18° Festival de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil, de 16 a 17 de outubro de 2013, no SESC Pompeia, São Paulo. (dezembro 2013)


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Ruy Luduvice


(São Paulo, Brasil, 1985) Pesquisador da Associação Cultural Videobrasil. Mestre em filosofia pela Universidade de São Paulo, e membro do Grupo de Estudos em Estética Contemporânea, ligado ao Departamento de Filosofia da FFLCH/USP. Pesquisa a interface entre Estética e Artes Visuais.

 

Tags
política; midiatização; televisão; analógico; internet; história; documentário; experimental; ativismo; reportagem;

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