São tempos sombrios para os sonhadores

Juliana Ossain, Laís Rabell, Mariane Beline, Najara Szabo
publicado em 29.05.2017
última atualização 30.05.2017

Essa mostra leva como título uma fala da personagem Amélie Poulain do filme O fabuloso destino de Amélie Poulain. O filme gira em torno de sua protagonista, um tanto sonhadora, um tanto ingênua, sempre ocupada em encontrar uma beleza inocente no cotidiano. Ela parece fora de um real contexto político-social, sendo apenas voltada a si mesma e ao seu próprio "bem-estar". Por isso, a frase de...


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Essa mostra leva como título uma fala da personagem Amélie Poulain do filme O fabuloso destino de Amélie Poulain. O filme gira em torno de sua protagonista, um tanto sonhadora, um tanto ingênua, sempre ocupada em encontrar uma beleza inocente no cotidiano. Ela parece fora de um real contexto político-social, sendo apenas voltada a si mesma e ao seu próprio "bem-estar". Por isso, a frase de Amélie nos causa certo estranhamento. Analisando-a, temos algumas questões ontológicas definidas desde o começo da filosofia.

 

Vamos começar pelo fragmento "São tempos sombrios (...)". O tempo, durante séculos de conhecimento, foi considerado uno, se seguirmos a linha filosófica que parte da mitologia e vai até os pré-socráticos. É o tempo (Chronos) o grande ordenador do universo sem o qual estaríamos submersos em um sombrio caos. Ao dizermos que o tempo é sombrio, também o dizemos caótico e desordenado. Se formos menos literais e entendermos "tempos" como um sinônimo de "época", percebemos um sentimento que acompanhou a humanidade por todo seu caminho: a angústia.

 

A angústia foi definida pelo filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard em 1844. Para o filósofo, a angústia experimentada pelos seres humanos era fruto do livre arbítrio. Vejamos o exemplo de um homem à beira de um precipício: apesar de, ao olhar para o fundo, sentir o impulso de pular, a queda lhe causa medo. É a eterna condição humana de medos fora de foco e relações entre a angústia e a ansiedade. É claro que essa angústia ganhou diferentes roupagens ao longo daquele século. Em 1857, Baudelaire escrevia seu malfadado Flores do mal e representava toda uma geração insatisfeita com seu tempo/época, conhecida posteriormente como “mal do século”.

 

Essa mostra foi pensada a partir de uma angústia com o tempo, uma sensação muito diferente das representadas em outros séculos. Que sensação é essa? O filósofo italiano Giorgio Agamben nos ensina que pertencer verdadeiramente a sua época é aceitar suas luzes e sombras. Então, partimos de uma sombra que rodeia as relações sócio-políticas dessa era: a impotência. Em 2013, o Brasil assistiu a uma série de manifestações, na ocasião vozes distintas que clamavam por educação, saúde e melhores condições de vida. Protestava-se contra todo o dinheiro investido para a realização da Copa do Mundo no país, contra a corrupção dos partidos políticos e a falta de respeito com o cidadão comum. Criou-se o slogan "O Gigante acordou", que convivia lado a lado com um slogan reciclado da ditadura militar — "A pátria de chuteiras".

 

Como diz o ditado popular: "Tudo acabou em pizza". O gigante acordado assistiu ao impeachment de uma presidente democraticamente eleita, assistiu a seus direitos de aposentadoria serem aniquilados com a reforma da previdência, sua saúde e sua educação serem sucateadas pela PEC dos gastos; também presenciou seus direitos trabalhistas descerem pelo ralo com a lei da terceirização e sua liberdade de imprensa desrespeitada por um juiz federal. E nós assistimos impotentes, inertes.

 

A primeira parte dessa mostra trata dessa impotência e do sentimento de angústia que ela gera perante esse grande precipício que é a realidade brasileira. O primeiro vídeo é Tocaia (Aline X e Gustavo Jardim, 2014) no qual uma manada de vacas permanece relativamente imóvel mesmo sendo submetida a algo como uma tocaia. O segundo vídeo segue a lógica do primeiro. Belle Époque (Armando Queiroz, 2014) mostra como uma bela estátua permanece em sua posição mesmo com um enorme besouro passeando por seu globo ocular.

 

Mas, como Agamben nos disse, também precisamos ver as luzes do nosso tempo. E essa luz é a possibilidade de ação. Apesar de enfrentarmos uma crise dos nossos direitos, temos certas mobilidades sociais: o direito à manifestação, à greve, à liberdade de expressão etc. Essas ações representam um avanço em relação à posição de simples vacas. Então, lentamente, a linha narrativa dessa mostra vai explorar as possibilidades e qualidades de ação. Temos aí Inimigo Invisível (Guilherme Peter, 2011), no qual, em um grande plano-sequência, a câmera sai de seu lugar de observação pacífica para ser o perseguidor de alguém. Em seguida, temos a animação Ratos de Rua (Rafael de Paula, Meton Joffily, 2003), que usa uma mescla de técnicas, como nanquim e fragmentos de imagens digitais, para construir uma forte crítica social à condição de crianças moradoras de rua nos grandes centros urbanos brasileiros.

 

Depois, Lucharemos hasta anular la ley (Sebastian Diaz Morales, 2004), em que a população de Buenos Aires protesta contra fortes limitações na lei para o comércio ambulante. Agora a ação está nas pessoas que, indignadas, lutam pelos seus direitos. E, para finalizar a discussão sobre as possibilidades de ação, trazemos o Sem título (Zimbabwean Queen of Rave), que contrapõe dois tipos de comemoração: uma por conquistas civis e outra assegurada por uma determinada constituição.

 

Mapeamento realizado por Juliana Ossain, Laís Rabell, Mariane Beline e Najara Szabo como resultado de curadoria realizada por alunos da Pós-graduação de Especialização em Arte: Crítica e Curadoria da PUC-SP a partir das obras do Acervo, sob orientação dos professores Cauê Alves e Priscila Arantes. (Abril de 2017)


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Outras conexões

O que é o contemporâneo, de Giorgio Agamben

 

Flores do mal, de Charles Baudelaire

 

O conceito de Angústia, de Soren Kierkgaard

 

Protestar não é delito, dissertação de mestrado sobre piqueteros na argentina, de Fernanda Cardozo. UFRGS (2008) [port]

 

Entenda o que está em jogo com a aprovação da PEC 55, Carta Capital (30/11/2016) [port]

 

Reforma trabalhista, modernização catastrófica e a miséria da República brasileira, de Giovanni Alves. Blog da Boitempo (27/03/2017) [port]

Tags
política; resistência; história; tempo;

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