Vídeo como dispositivo de escuta

Mariela Cantú
publicado em 16.01.2017
última atualização 30.01.2017

“Escutar é considerado algo dado: acredita-se que não são necessários nem habilidade, nem aprendizado para escutar, como se fosse um dom natural; é tido como natural no diálogo, em teorias do discurso e da ação comunicativa. Sequer é pertinente perguntar o que significa escutar.”[1]

Como já sugeriu Michel Chion, a maioria dos estudos sobre cinema voltaram-se para suas características visuais...


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“Escutar é considerado algo dado: acredita-se que não são necessários nem habilidade, nem aprendizado para escutar, como se fosse um dom natural; é tido como natural no diálogo, em teorias do discurso e da ação comunicativa. Sequer é pertinente perguntar o que significa escutar.”[1]

 

Como já sugeriu Michel Chion, a maioria dos estudos sobre cinema voltaram-se para suas características visuais como foco principal. Em suas próprias palavras, “mesmo que alguns pesquisadores tenham oferecido pontos de vista valiosíssimos sobre a questão, suas contribuições […] ainda não exerceram influência suficiente para impor uma reconsideração sobre o cinema em relação ao papel que o som desempenha nele nos últimos sessenta anos.”[2]Apesar de Chion se concentrar principalmente nos filmes, a necessidade de expandir essas considerações para o campo audiovisual como um todo é claro. Nesse contexto, o vídeo pode ser visto como um campo altamente fértil para experimentações sonoras, como foi proposto por um grupo de videomakers no final dos anos 80 e início dos 90 no Brasil. Concomitante a um agitado contexto político, que testemunhou a transição entre a ditadura militar brasileira e a retomada da democracia, eles aprofundaram um uso particular desse meio, que proponho chamar de vídeo como dispositivo de escuta. Pensado como um meio de contrainformação, o vídeo foi utilizado por muitos videomakers como uma forma política de abordar a realidade durante esses anos, recorrendo ao diálogo e a entrevistas nas ruas como estratégia central para a inclusão de uma diversidade de perspectivas.

 

Não por acaso a relevância da figura do “repórter”, como nos célebres personagens de Ernesto Varela (Olhar Eletrônico), Brivaldo (TV Viva) ou Tadeu Jungle (TVDO), foi uma característica distintiva da época. No entanto, vale notar que, mesmo que as pessoas na rua fossem incluídas como parte vital das entrevistas, as figura do repórter, conforme apresentada nos casos acima, acabaria por se tornar um protagonista com enorme visibilidade. Uma estratégia diferente, embora complementar, era usada por outros videomakers, em que o discurso das pessoas era colocado em destaque. Em Diretas na Sé (Roberto Elisabetsky, 1984), por exemplo, os repórteres se apresentavam e contextualizavam a situação no início do vídeo, para em seguida se retirarem da imagem e do som durante o restante do vídeo.  Essa estratégia traz à luz a questão da representação, ainda mais quando se reconhece o contexto do trabalho – o vídeo foi feito durante uma enorme e poderosa manifestação de mais de 300.000 pessoas em São Paulo, que clamavam pela volta das eleições diretas e o retorno da democracia no Brasil. Se o silêncio é requisito obrigatório para o diálogo, retirar a relevância do repórter pode ser igualado com o ato de nos permitir ouvir o que outros têm a dizer, evitando considerá-los personagens por quem se fala.

 

Uma característica distintiva do vídeo como dispositivo de escuta é a forma como o microfone é utilizado. Diferente da ação mais comum de um repórter, de posicionar o microfone próximo da boca do entrevistado, Castelo de Areia (Nilo Diniz, 1987) recorre a uma estratégia diferente. Nessa obra, a preeminência do repórter é substituída pelo papel protagonismo da comunidade, cujos membros fazem suas declarações diretamente no microfone que eles mesmos empunham.

 

Como ocorre em Diretas na Sé, a estratégia de escuta nesse vídeo também incorpora o que está em questão: as casas de um complexo residencial em Santos, no estado de São Paulo, foram construídas no contexto de uma operação fraudulenta do Banco Nacional da Habitação (BNH), que resultou em um sério risco de desabamento, inundações e condições precárias de moradia para a comunidade. Mesmo que segurar o microfone possa ser considerada uma questão menor ou mera preferência estética, a verdade é que quem controla o microfone está autorizado a interromper, silenciar ou manipular as palavras do entrevistado. Nesse contexto, o fato de os membros da comunidade poderem decidir sobre o uso do microfone pode ter um impacto potencial em sua transformação de vítimas a agentes políticos, transferindo-lhes, assim, o poder de escolha das palavras, o tempo e o ritmo em que desejam se manifestar. Nas palavras de Nilo Diniz, o vídeo pode ser considerado, nesse trabalho, “um instrumento de mobilização e transformação, mas também de educomunicação, sempre que vídeos, fotos e o processo de criação em si for compartilhado, além de ser útil para reunir, informar, criar lideranças e melhor preparar as comunidades para suas lutas em favor de uma vida melhor para todos”[3]

 

O aspecto performativo da escuta também é colocado em questão em VT Acidentado: PQ?/PN! (Rosana Almeida Salvador, 1988). Em oposição a Diretas na Sé e Castelo de Areia, Almeida Salvador coloca o entrevistador como figura central em seu vídeo. No entanto, os dois homens encarregados de fazer as perguntas nas ruas de Salvador, na Bahia, mal podem ser chamados de “repórteres”. Nesse caso, as entrevistas nas ruas fazem parte de uma narrativa maior, que conta a história de dois alienígenas cuja nave cai no Brasil enquanto procuravam por NYSP, uma metrópole que é um misto de Nova York com São Paulo. Vestidos com fantasias chamativas, os dois alienígenas perambulam pelas ruas de Salvador tentando descobrir em que lugar vieram parar. Embora seja evidente que não são nem repórteres, nem alienígenas, a estratégia ficcional se transforma na desculpa perfeita para perguntar aos moradores (e visitantes) de Salvador o que pensam da cidade. Assim, declarações mais otimistas como “É uma cidade maravilhosa” ou “Melhor que isso, só em outro mundo!” se chocam com outras como “É uma cidade que cresce pro lado errado” ou “Está se transformando numa ditadura do Axé”.

 

Usar o vídeo como dispositivo de escuta pode, portanto, permite o surgimento de contradições. Longe da tentativa de estabelecer um ponto de vista categórico, vídeos como O inglês que o Brasil vê (Sergio Sbragia, 1990) e Sussuarana Street - Um vídeo de múltipla escolha (Rosana Almeida Salvador, 1989) encaram a possibilidade (e o desejo) de discursos duvidosos. O inglês que o Brasil vê reúne declarações de visitantes e turistas ingleses, e também de brasileiros, nas ruas da famosa cidade do Rio de Janeiro. Como é de se esperar, as perguntas propostas aos entrevistados buscam tocar em questões controversas: “Quem deixa mais dinheiro, o inglês ou o brasileiro?” ou “Se você tivesse dinheiro, gostaria de ser turista?”.

 

Sussuarana Street também lida com as disparidades existentes entre o estrangeiro e o local em uma cidade específica, porém com outro enfoque. Nesse vídeo, processos de gentrificação (para recorrer a um termo contemporâneo) são analisados por meio da discussão de possíveis razões para prédios novos ostentarem nomes estrangeiros – principalmente em inglês, francês e italiano. Novamente, os repórteres não fazem parte da imagem – quase não se escuta sua voz ao fazerem as perguntas. E, uma vez mais, o fato de ficarem em silêncio frente às declarações das pessoas evita a tentação de se tornarem condutores explícitos do público. Nesse sentido, o subtítulo do trabalho – Um vídeo de múltipla escolha – reforça a tarefa deixada ao espectador. Como sugere Mariflor Aguilar Rivero[4], sempre há o risco na escuta: o risco de mudar a opinião de alguém.

 

Ainda que o vídeo seja sendo estudado principalmente da perspectiva da visualidade, suas qualidades sonoras também merecem destaque. Dentro de um tempo presente marcado pelo excesso de informação, discursos contraditórios e a confusão generalizada radicadas em equívocos profundos, considerar as formas por que o vídeo tem contribuído com a escuta como uma ferramenta política para mudança social se torna crucial. Ao encararmos a escuta como a fase inicial do diálogo, da troca e de entendimentos possíveis, consider o vídeo como um dispositivo de escuta – conforme elaborado nos trabalhos de Roberto Elisabetsky, Nilo Diniz, Rosana Almeida Salvador e Sergio Sbragia – pode certamente ajudar a descobrir possíveis metodologias e práticas de escuta. De modo geral, não há necessidade de dar a outros a permissão de falar, mas, sim, o espaço para que se sintam livres para falar.

 

Mapeamento realizado por Mariela Cantú a partir da pesquisa realizada no Acervo Histórico Videobrasil entre os meses de agosto e dezembro de 2016.

 

[1] Mariflor Aguilar,“¿Qué significa escuchar?”. Revista Carta Psicoanalítica, 4, 2004. Acessado em 2 de dezembro de 2016. http://www.cartapsi.org/spip.php?article184. (Tradução livre)

 

[2] M. Chion, La audiovisión. Introducción a un análisis conjunto de la imagen y el sonido. Barcelona, Paidós Ibérica, 1993. p. 10. (Tradução livre)

 

[3] Nilo Diniz, declaração para a Plataforma VB, novembro de 2016.

 

[4] Mariflor Aguilar. “¿Qué significa escuchar?”. Revista Carta Psicoanalítica, 4, 2004. Acessado em 2 de dezembro de 2016. http://www.cartapsi.org/spip.php?article184. (Tradução livre)

 


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