Trajetos de Submissão

Juliana Oliveira , Laís Mayumi, Paula Toledo , Sophia Toledo , Thais Doro , Thiago Franco
publicado em 13.01.2017
última atualização 30.01.2017

“Não é possível um envolvimento passivo. Invocar uma palavra, uma imagem ou um gesto passado significa entrar num campo de disputa por seus significados, e com nossas necessidades e urgências hoje. É necessário manipular, trair, tergiversar e virar aquelas histórias heteronormativas que tentam nos impor como legados de verdade, constituídas a partir da patologização da omissão e do...


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“Não é possível um envolvimento passivo. Invocar uma palavra, uma imagem ou um gesto passado significa entrar num campo de disputa por seus significados, e com nossas necessidades e urgências hoje. É necessário manipular, trair, tergiversar e virar aquelas histórias heteronormativas que tentam nos impor como legados de verdade, constituídas a partir da patologização da omissão e do silenciamento da dissidência sexual.”[1]

 

É necessário que a sociedade e a política rompam com a hegemonia do discurso dominante, que dita posições normativas com efeitos repressivos, silenciando histórias e lutas de indivíduos que não possuem a liberdade de apenas ser quem são. Por anos essas posições vêm interferindo na vida e escolha pessoal de cada indivíduo que não pertence ao padrão imposto pela supremacia do gênero masculino, fazendo com que vivam submissos e calados aqueles que não correspondem a essa construção social dos ideais de comportamento sexual e/ou de gênero ao longo dos tempos, portanto, boicotando os direitos de tomada de decisões individuais ou de adequação a grupos dentro da sociedade.

 

Trajetos de submissão é um exercício curatorial que reúne trabalhos artísticos (no formato de vídeo) desenvolvidos por artistas que se voltam para esse problema social, e que tem por objetivo refletir sobre as diferentes realidades de indivíduos da comunidade LGBT que olham para sua realidade social e são sectários da luta contra a repressão cultural e a violência a que estão sujeitos diariamente. Ao tratar sobre o assunto por meio dos vídeos selecionados para essa mostra, o projeto pretende suscitar um debate crítico acerca das dificuldades vivenciadas por quem sofre discriminações heteronormativas, chamando a atenção para a maneira com a qual a sociedade contemporânea de alguns países do sul geopolítico lida com as questões de gênero e sexualidade e como ela tem o poder de moldar o comportamento daqueles que a compõem – tratando o diferente de maneira hostil e o excluindo sistematicamente. O sul geopolítico é cenário de diversas manifestações de ódio a minorias sociais. Questões de identidade de gênero e sexualidade estão muitas vezes cercadas de preconceito e violência. O mote curatorial gira em torno dos aspectos relativos a tais repressões, expondo como ainda há um longo caminho em busca da liberdade daqueles que não se encaixam no padrão heteronormativo e machista de sexualidade e comportamento.

 

Além de levar em conta o recorte geopolítico do acervo da associação, esta curadoria selecionou vídeos que mostram diferentes realidades de membros excluídos da sociedade por seu gênero ou sexualidade. Logo, o projeto se aproxima não só do acervo e da missão da associação, como também dá continuidade à programação recente do Videobrasil, que já abordou inúmeras vezes a luta de movimentos sociais e culturais que foram apagados por sistemas opressores, autoritários e normativos.

 

O vídeo como mídia aparece como instrumento fundamental no processo de ampliação da visibilidade de narrativas ignoradas devido a seu fácil acesso (cada vez mais amplo, tendo em vista o uso frequente de aparelhos celulares com câmera, por exemplo) e comunicabilidade oferecendo, assim, uma oportunidade de fala e projeção a uma camada marginalizada da sociedade – pessoas que fazem parte da comunidade LGBT.

 

Mesmo com a visibilidade que essas questões ganharam ao longo do tempo através das manifestações por direitos da comunidade LGBT, é visível também a resistência de grande parte da sociedade, que se manifesta negativamente, utilizando-se das prerrogativas da política e da cultura, criando leis que limitam a liberdade desses indivíduos e que tentam sisar direitos que já foram conquistados arduamente ao longo dos anos. Essas ações acabam por influenciar a maneira com a qual a sociedade é conduzida a pensar e agir em relação a isso. Sendo assim, a discussão sobre a repressão se faz bastante relevante na contemporaneidade e, por isso, achamos de extrema importância trazer essas questões para o espaço acadêmico, destinando um tempo ao final da mostra como espaço de discussão e debate dedicado às ideias dos vídeos e à liberdade de expressão. A seleção demonstra posicionamento e atitude política e intelectual em favor da democracia e dos direitos humanos. Acreditamos que os recortes apresentados denunciam problemas sociais graves e refletem temas importantes da luta do movimento em favor dos direitos da comunidade LGBT. Tendo isso em vista, achamos interessante destacar a situação política e social da comunidade LGBT nos países contemplados pela seleção – Brasil, Líbano e Rússia –, justificando, assim, a necessidade de abordar esse tema e a escolha desses países como exemplos da situação enfrentada por diversos indivíduos.

 

Ao mesmo tempo que sedia algumas das maiores Paradas do Orgulho LGBT do mundo, o Brasil também é palco de inúmeras manifestações de ódio e discriminação. Apesar dos avanços recentes, como o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo ou, ainda, o direito ao uso do nome social por transexuais e travestis, a situação da população brasileira é preocupante.

 

A constante difamação e a perseguição sistemática à comunidade LGBT, muitas vezes incentivada por fundamentalistas religiosos e seus representantes políticos, é um dos obstáculos a serem vencidos pelo movimento. A homotransfobia institucionalizada não é uma ameaça recente, mas nos últimos anos vem tomando proporções assustadoras – a exemplo da “Escola sem Partido”, projeto que, sob o pretexto de neutralidade política, pretende proibir a discussão de assuntos relacionados ao gênero e à sexualidade nas escolas. Na contramão de projetos de lei excludentes, é possível citar o Transcidadania, uma iniciativa da Prefeitura de São Paulo que tem como objetivo promover a reintegração social da população trans em situação de vulnerabilidade social.

 

Quando a questão toca na tradição cultural e política de um país, a aceitação se torna ainda mais difícil, como é o caso da comunidade LGBT na Rússia. Aparentemente, o indivíduo russo tem liberdade de escolha sexual desde que a mantenha em sigilo. Em julho de 2013, o presidente Vladimir Putin promulgou a lei que proíbe qualquer propaganda de relações sexuais não tradicionais com a intenção de “proteger” as crianças russas e na tentativa de se distanciar mais ainda da “cultura ocidental”. Ao assinar a lei, Putin gerou indignação e inspirou manifestações ao redor do mundo a favor da liberdade sexual e dos direitos humanos. Ao mesmo tempo, muitos cidadãos russos viram a lei como uma maneira de disseminar ódio e perseguir a comunidade LGBT sem sofrer consequências pelos crimes.

 

Outro meio de repressão frequente se dá pela autocracia da cultura religiosa. Tanto no Ocidente quanto no Oriente há pessoas que se aproveitam de preceitos religiosos para incentivar o preconceito, chegando até a incentivar projetos de leis que condenam lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis à morte. No Líbano, por exemplo, a homossexualidade foi oficializada como ato ilegal e não-natural por uma lei criada em 2011, e a punição pode chegar a um ano de cárcere. A população libanesa se divide, em sua maioria, entre muçulmanos e cristãos. Tanto para o Alcorão quanto para a Bíblia, os dois livros sagrados mais seguidos, a relação sexual entre pessoas do mesmo sexo é condenada como pecado e, para o livro sagrado dos mulçumanos, o Alcorão, a condenação é a morte, enxergando a homossexualidade como uma prática depravada que perturba o padrão de vida “natural” da sociedade, em que os praticantes são vistos como “escravos de sua luxúria” e não possuem gosto, moral e vida decentes.

 

Mapeamento realizado por Juliana Oliveira, Laís Mayumi, Paula Toledo, Sophia Toledo, Thais Doro e Thiago Franco sob orientação do professor Cauê Alves por ocasião do projeto "Incursões da PUC-SP no Acervo Histórico Videobrasil", no qual alunos do curso Arte: História, Crítica e Curadoria da PUC-SP elaboram mostras de vídeo a partir do Acervo Videobrasil como exercício interdisciplinar do último semestre do curso. (Dezembro de 2016)

 

[1] Miguel Angel López, Alianças de Corpos Vulneráveis: feminismos, ativismo bicha e cultura visual. São Paulo: Sesc, 2015, p. 15


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Outras conexões

Rússia aprova lei que pune 'propaganda gay' e ofensa a religiosos (Folha de São Paulo, 11 de junho de 2013) [port] 

 

A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, por Stuart Hall (DP&A, Rio de Janeiro, 1992) [port]

 

Alianças de Corpos Vulneráveis: feminismos, ativismo bicha e cultura visual, por Miguel Angel López (Sesc, São Paulo, 2015) [port/eng]

 

O sul para além da geografia, a acepção política e econômica do termopor Ricardo Machado (IHU Online, 2014) [port]

 

Os gays na sociedade russa: total liberdade, mas em sigilopor Cristina Mestra (Sputnick News, 2014) [port]

 

Um sul sem nortepor Vivian Mocellin (ARTE! Brasileiros, 2016) [port]

Tags
poder; repressão; sexualidade; resistência; homosexualidade; violência;
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