O “sul” está em toda a parte

André Fernandes, João Batista Teodoro, Márcia Talento, Vinícius Santana
publicado em 04.01.2017
última atualização 30.01.2017

A proposta de mapeamento O “sul” está em toda a parte surge do questionamento de uma das diretrizes de organização do acervo da Associação Cultural Videobrasil. Trata-se de perguntar pelo uso da expressão “sul geopolítico”. Por que utilizar a metáfora “sul geopolítico” para falar de exclusão e de pobreza se o conteúdo é o mesmo e apenas a taxonomia é alterada? Ou por que tal expressão é...


Leia mais +

A proposta de mapeamento O “sul” está em toda a parte surge do questionamento de uma das diretrizes de organização do acervo da Associação Cultural Videobrasil. Trata-se de perguntar pelo uso da expressão “sul geopolítico”. Por que utilizar a metáfora “sul geopolítico” para falar de exclusão e de pobreza se o conteúdo é o mesmo e apenas a taxonomia é alterada? Ou por que tal expressão é empregada como uma metáfora-conceito, cujo eufemismo resulta de um sentido figurado de pobreza e exclusão? A escolha do tema foi motivada por três fatores: a crise política, o conceito de organização do acervo da Associação Cultural Videobrasil em torno do conceito de “sul geopolítico” e o espaço de exibição do JAMAC.

 

Pobreza e exclusão há em toda a parte. Seja o país rico, seja o país pobre, sempre há graus de pobreza e exclusão. Nesse sentido, é possível perceber certa planificação do problema. A metáfora-conceito talvez assim se justifique, por um lado, porque opera como atenuante ético para a diferença econômica, fabulando uma realidade de convivência pacífica na diferença das classes e, por outro lado, porque, atenuado, o termo torna a pobreza uma commodity cultural cujo valor pode ser negociado. De um modo ou de outro, mesmo entendido nas próprias bases da organização do Videobrasil, a metáfora-conceito deve ser matizada e compreendida apenas como critério de enquadramento político, econômico e social para um acervo abrangente de cerca de 10.000 itens. A fim de abordar algumas facetas do conceito de “sul geopolítico”, foram considerados três modos de representação da pobreza e da exclusão:

 

- metafórico, próximo à “ficção”[1] (Política e Ratos de rua);

 

- não metafórico, próximo ao “documentário” (Do outro lado da sua casa);

 

- transigentes entre a “ficção” e “documentário” (O samba do crioulo doido e The Same Old Choice).[2]

 

Metáfora é uma figura de linguagem que diz uma coisa para indicar outra. Talvez a metáfora seja o principal veículo da poesia. Leva o leitor num instante ínfimo de tempo à compreensão complexa da aproximação entre “a” e “b”. No entanto, quando usada no campo político para descrever uma realidade, parece que a linguagem, como representação do mundo, recobre o mundo. Já se viu isso em momentos variados da história, como no Estado Novo, quando se usava a expressão “Getúlio, pai dos pobres” para atenuar sua atuação de ditador. Por meio da metáfora, entram em ação diversos operadores de uma fábula em detrimento da vida concreta de cada pessoa. Nesse caso, a metáfora “sul geopolítico” opera, por uma diferença cultural e social, a exploração econômica dos países do hemisfério sul pelos do norte. No entanto, estamos no campo da arte, onde a metáfora é quase um imperativo, por isso supôs-se produtiva a gradação dos tipos de representação oferecidos à mostra.

 

Ocorre, contudo, que quando a teoria significa já uma ação na realidade, as diferenças econômica, social e cultural dão lugar à imagem organizada e bela, que opera para homogeneizar diferenças. Nessa espécie de simplificação, todos podem compreender o outro sem se desprender do próprio tempo e espaço em que estão inseridos, constituindo quase sempre o restabelecimento de um pré-conceito do passado sob regimes historicistas. Se essa forma de organização expressa por “sul geopolítico” atende à superestrutura, rui quando em contato com a realidade que a atravessa. Se a pobreza está em toda parte e nada de efetivo é feito para mudar a condição de vida da maioria das pessoas, a teorização a seu respeito pode transformá-la numa espécie de universal contemporânea a definir a posição dos corpos, o modo de produção e de circulação de imagens, assim como educar sensibilidades. A culturalização da pobreza parece resultar no confinamento dos bens materiais e simbólicos. 

 

Muitas poderiam ser as abordagem ao acervo da Associação Cultural Videobrasil, mas se tratando do local da mostra, o JAMAC (Jardim Miriam Arte Clube), esse questionamento parece justificado. De outra forma, poder-se-ia correr o risco de ter uma abordagem pitoresca. Perguntar pelos valores de uma comunidade e não pela definição (que é letra morta de dicionário) pode ser uma chave de entendimento. Assim, são apresentados cinco trabalhos que abordam aspectos de condições de vida diversos. Porque isso não é um tema, mas o modo como representações dispõem um certo imaginário.

 

O que se pretende é levantar questões entre os espectadores das obras a fim de perceber quais as potencialidade e os limites que permitem desdobrar em mudanças das condições concretas de vida. A principal talvez seja como os moradores do Jardim Miriam percebem a influência das imagens produzidas na diferença e como o outro os percebem no contexto da cidade. Nesse sentido, foram selecionados trabalhos que colocam a diferença e o outro na constituição de identidades e na transformação de realidades. Seja do ponto de vista artístico, seja político, econômico ou social, a imagem estrangeira a qualquer realidade constrói pontos de vista que muitas vezes são incorporados, de modo que pré-conceitos e atavismos impedem de nomear tal realidade de outras formas, achatando-a.

 

Além da inequívoca filiação dos trabalhos ao conceito de “sul geopolítico” da Associação Cultural Videobrasil, o recorte realizado permite visualizar como se organizam alguns aspectos do pensamento brasileiro, indo da crítica à política oficial, ao imaginário do estrato mais marginalizado, como pessoas em situação de rua e travestis, que demonstram lucidez quanto à própria condição de vida prática e existencial.

 

Mapeamento realizado por André Fernandes, João Batista Teodoro, Márcia Talento e Vinícius Santana sob orientação do professor Cauê Alves por ocasião do projeto "Incursões da PUC-SP no Acervo Histórico Videobrasil", no qual alunos do curso Arte: História, Crítica e Curadoria da PUC-SP elaboram mostras de vídeo a partir do Acervo Videobrasil como exercício interdisciplinar do último semestre do curso. (Dezembro de 2016)

 

[1] As aspas foram usadas para evidenciar uma ambiguidade e impureza, presentes tanto na ficção quanto no documentário. Afinal, nenhum gênero é puro ou está livre de ser contaminado por outros.

[2] É evidente, porém, que tais categorias não descrevem o fenômeno, antes, procuram oferecer ferramentas de recepção de obras que tratam da pobreza e da exclusão.

 


Reduzir texto -
Outras conexões

Panoramas do sul: Leituras, por Sabrina Moura (SESC/Videobrasil, São Paulo, 2011) [port]

 

Mônica Nador + JAMAC Paço Comunidadeorganizado por Mônica Nador e Priscilla Arantes (Paço das Artes, São Paulo, 2015) [port]

 

A partilha do sensívelpor Jacques Racnière (Editora 34, São Paulo, 2005) [port]

 

Mônica Nador/JAMACorganizado por Thais Rivitti (Pinacoteca do Estado de São Paulo/Luciana Brito Galeria, São Paulo, 2013) [port]

Tags
política; pobreza;
Comentários