Contiguidade e incompletude

Viviane Tabach, Simone Nunes, Rachel Balassiano, Isabella Guimarães
publicado em 09.12.2016
última atualização 30.01.2017

Contiguidade e Incompletude é um recorte da produção artística apresentada nas últimas três mostras do Festival de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil, cujas inspirações e parâmetros norteadores da seleção de obras presentes recaem sob o Sul geopolítico – América Latina, Caribe, África, Oriente Médio, Europa do Leste, Sul e Sudeste asiático e Oceania – e suas questões humanitárias, sociais,...


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Contiguidade e Incompletude é um recorte da produção artística apresentada nas últimas três mostras do Festival de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil, cujas inspirações e parâmetros norteadores da seleção de obras presentes recaem sob o Sul geopolítico – América Latina, Caribe, África, Oriente Médio, Europa do Leste, Sul e Sudeste asiático e Oceania – e suas questões humanitárias, sociais, políticas e históricas. Em oposição à perspectiva das narrativas de um norte pragmático e homogeneizador, formado pelo eixo colonizador da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, o conjunto de obras aqui exposto sugere modos distintos de análise de realidades particulares de países como Bolívia (Claudia Joskowicz), Brasil (Clara Ianni), Chile (Claudia Aravena e Jonathas de Andrade), China (Liu Wei), Coreia do Norte (Mihai Grecu) e Zimbábue (Dan Halter). Os trabalhos abordam questões de contextos específicos, ao mesmo tempo que espelham realidades de outras faces geográficas, fazendo-se perceber aspectos locais enquanto globais. Eles revelam um presente que atua como transição e aludem às histórias aparentemente desconexas que, uma vez justapostas e sobrepostas, evidenciam relações sintomáticas.

 

Questões como memória; trânsito migratório; tecido social; falência de modelos sociais, econômicos e do projeto moderno; passagem do tempo; historicidade; repressão e resistência; visibilidade e invisibilidade de questões ideológicas, políticas e históricas; e conflitos sociais e políticos permeiam as obras e legitimam a pertinência de trazer à luz assuntos que convergem sistematicamente sobre aspectos vulneráveis e recorrentes da contemporaneidade e da História. O aporte a tais inflexões favorece a visibilidade de formas de pensamento e compreensão de outras e das mesmas realidades aqui expostas. Uma chave de interpretação possível para a articulação conceitual de tais obras escolhidas vai ao encontro do que preconizou Walter Benjamin: “A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido. (...) Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”[1]. Testemunhos que, ora aparentam atuar como vestígios de histórias prestes a se apagar, ora buscam questionar, denunciar e desvelar a versão de um fato histórico ideologicamente cristalizado e perpetuado ao longo do tempo. Estes guiam alguns trabalhos e trazem à tona suas complexidades. A dimensão política em que repousa a seleção presente considera como prática situações que atravessam as tensões originadas na sociedade. A história atua como o lugar da arte e da política.

 

Em Forma Livre, de Clara Ianni, a monumentalidade das imagens do projeto de Brasília é compassada com a omissão de Oscar Niemeyer e Lucio Costa, registrada em entrevista, a respeito do massacre de trabalhadores candangos. Ambos se esquivam das questões do entrevistador e tentam minimizar os fatos abordados, alegando ser um exagero o relato do ocorrido. As manipulações televisivas em 11 de septiembre, de Claudia Aravena, aproximam dois fatos históricos ocorridos na data que dá título à obra, conferindo-lhes igual importância, enquanto imediatamente confrontam as diferentes significações que lhes são atribuídas. As formas de inscrição da memória no corpo e nas experiências subjetivas são narradas de forma a concatenar imagens e situações históricas que ressignificaram o cenário das relações de poder locais e globais. Ao questionar o próprio suporte como meio, apropriando-se de recursos cinematográficos, Round and round and consumed by fire, de Claudia Joskowicz, faz referência ao filme estadunidense de faroeste Butch Cassidy and the Sundance Kid, lançado em 1969. Em uma única tomada panorâmica, imbuída da espera de um acontecimento por vir, o tempo se mostra dilatado e o seu ritmo desacelerado. Reencena-se o cerco da polícia boliviana a criminosos dos EUA, em um contexto social particular e específico da realidade sul-americana, desvelando situações e tensões vinculadas a poderes hegemônico e periférico. Em Unforgettable Memory, de Liu Wei, a fotografia icônica de um homem que enfrenta sozinho uma fileira de tanques de guerra é recurso para acessar a memória dos chineses sobre o massacre na Praça da Paz Celestial em Pequim, em 1989, porém a fuga dessa lembrança prevalece. O silêncio se sobrepõe ao luto, à dor e à solidariedade; a censura e o medo agenciam a memória.

 

Beitbrigde Moonwalk, de Dan Halter, revela as tensões sociais e o conflito entre os fluxos migratórios pelo andar de costas, em reverso, do sujeito que cruza a fronteira entre o Zimbábue, na cidade de Beitbridge, e a África do Sul. A tomada de uma única cena, inspirada pelo relato de imigrantes em constante movimento, transpassa noções de territorialidade, invisibilidade e tensões sociais presentes em ambas as realidades africanas. Tais aspectos também se manifestam na animação Pacífico, de Jonathas de Andrade, que apresenta dois momentos históricos da América Latina: a ficção de paz, construída pelo Chile sob os auspícios de Pinochet, e a perda do mar da Bolívia, conectando histórias aparentemente desconexas. Passado e presente são comprimidos no mesmo plano, evocando tanto a memória da ditadura militar quanto o terremoto que destacou o Chile do continente sul-americano, como experiências traumáticas do corpo social. O terremoto atua como metáfora de uma possível instabilidade constante de um terreno, aludindo às ideias de construção de verdades, ideologias e de sentimentos históricos.

 

Numa outra chave de elaboração para a crítica e para a politização da arte, o poder simbólico da música, dos monumentos e da fotografia em um contexto social autoritário é posto à prova. Em Sitiado, de Carlos Guzmán, policiais buscam exterminar não só as caixas de som que emitem fragmentos de músicas censuradas pelos regimes militares em países latino-americanos, como tudo o que elas representam. Estão aprisionados em um processo cíclico, em que repressão e manifestação se correspondem incessantemente. O trabalho parte do filme Estado de sítio, de Costa-Gavras, de 1972. The Reflection of Power, de Mihai Grecu, retrata um momento entre um fim e um possível recomeço, a linha tênue entre triunfo e falência. A fragilidade de ideologias é explorada por meio da monumentalidade do aparelho político e dos bens culturais, legitimado em regimes totalitários e da barbárie.

 

Contiguidade e Incompletude apresenta possibilidades de apreensão do mundo e busca problematizar um conceito de história que se manifesta como objeto de desconstrução, cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de “agoras”[2]. Dessa forma, desestabilizam-se narrativas, despertando questões dormentes por um viés que não a versão dominante da história, correspondendo-se com a consciência sobre o que é estado de exceção e o que é regra geral – cabe aludir a Jean-Luc Godard, que aborda a cultura como regra e a arte como exceção. As problematizações que os trabalhos escolhidos carregam nos permitem inferir do entendimento de questões históricas, em que o tempo passado é vivido como rememoração, denúncia e interferência de um lugar previamente estabelecido. Assim, torna-se possível dar um novo sentido ao que passou através da escrita da História a contrapelo, como exigência fundamental de Walter Benjamin, para viver criticamente a construção do presente, alargando as possibilidades de ver e interpretar o mundo para além das heranças culturais que permeiam os referenciais contemporâneos que nos cercam.

 

Mapeamento realizado por Viviane Tabach, Simone Nunes, Rachel Balassiano e Isabella Guimarães por ocasião da mostra Contiguidade e Incompletude, que é o resultado da curadoria realizada por alunos da Pós-graduação de Especialização em Arte: Crítica e Curadoria da PUC-SP a partir das obras do Acervo, sob orientação do professor Cauê Alves. (Dezembro de 2016)

 

[1] Walter Benjamin. Sobre o conceito de história; em Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.

 

[2] Idem.


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Outras conexões

Candangos falam sobre pesada carga horária e o massacre de 1959, Revista de História (2011) [port]

 

Resenha de Estado de sítio, de Costa-Gavras, 50 anos de filme (2010) [port]

Tags
território; conflito; arquitetura; resistência; imigração; construção; narrativa; memória; violência; esquecimento;

Oscar Niemeyer - A construção de Brasília e a revolta dos operários

Trecho extraído do filme Conterrâneos Velhos de Guerra, de Vladimir Carvalho, 1991. Entrevista com Oscar Niemeyer sobre massacre de candangos nos canteiros de obra de construção de Brasília. 

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