Urgências cartográficas

NEC.IAU.USP
publicado em 15.08.2014
última atualização 27.04.2016

“A cidade, como outras cidades, tem muitos habitantes, cada um com um mapa da cidade em sua cabeça. Cada mapa tem seus espaços vazios, ainda que em mapas diferentes eles se localizem em lugares diferentes. Os mapas que orientam os movimentos das várias categorias de habitantes não se superpõem, mas, para que qualquer mapa ‘faça sentido’ algumas áreas da cidade devem permanecer sem sentido....


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“A cidade, como outras cidades, tem muitos habitantes, cada um com um mapa da cidade em sua cabeça. Cada mapa tem seus espaços vazios, ainda que em mapas diferentes eles se localizem em lugares diferentes. Os mapas que orientam os movimentos das várias categorias de habitantes não se superpõem, mas, para que qualquer mapa ‘faça sentido’ algumas áreas da cidade devem permanecer sem sentido. Excluir tais lugares permite que o resto brilhe e se encha de significado. O vazio do lugar está no olho de quem vê e nas pernas ou rodas de quem anda. Vazios são os lugares em que não se entra e onde se sentiria perdido e vulnerável, surpreendido e um tanto atemorizado pela presença de humanos.”

Zigmunt Bauman elabora este trecho a partir da experiência de ter estado em trânsito por uma grande cidade europeia. Após ter realizado um longo itinerário aeroporto-cidade ciceroneado por uma professora universitária, para quem as congestionadas avenidas da cidade eram inevitáveis, ele se surpreende com a curta duração do trajeto de retorno, guiado por um taxista percorrendo caminhos alternativos.  

Aqui o autor nos relembra de conexões realizadas cotidianamente entre sujeitos, territorialidades, mapas mentais, e cheios e vazios de sentido produzidos. Como também nos diz muito da experiência contemporânea que se realiza em territorialidades paralelas ou entrecruzadas (um lugar junto com outro, fricção), e no trânsito constante entre lugares (um lugar depois do outro, aceleração). 

Desenhamos e reconfiguramos nossos mapas a partir da experiência. Construímos sentidos gerando apagamentos; e cheios são produzidos deixando vazios. Há bordas entre estes cheios e vazios, entre o visível e o invisível, entre o sentido e o sem-sentido. E há humanos habitando “vazios”, os quais se tornam “cheios” pela ação de seus habitantes. 

Diante deste universo de espacialidades múltiplas, como não pensar na noção que propôs Fredric Jameson de “estética do mapeamento cognitivo”, pela qual deveriam ser investigadas formas de representação capazes de espacializar nossa posição individual e coletiva na difusa realidade contemporânea? Ou, tomando de empréstimo de Jacques Rancière, como não pensar na arte como “partilha do (espaço) sensível”,  como prática de instauração de visibilidade a espacialidades antes invisíveis? A partir destas matrizes de pensamento, pensamos algumas práticas artísticas como cartografias do espaço sensível.

Hidden Cities (2012), vídeo Gusztáv Hámos, nos apresenta conflitos poéticos que habitam cidades imaginárias do “entre” que surgem da montagem de registros fotográficos realizados entre 1975 e 2010, em Berlim, Nova York e Budapeste.  Ella é uma cidade marcada por linhas entre opostos, desenhadas por meiofios entre fluxos e fixos; Felicitá encontra-se entre a felicidade e o desejo, representada por monumentos dispostos ao sol; Klara situa-se entre estatísticas e segredos, revelados em cartões postais; Laurencia, entre o passado e o futuro fixados em manequins; Iossifowna, entre o espaço público-masculino e o espaço privado-feminino, revelados a partir de desfiles civis; Irita, entre o poder e o imaginário de desastres, estampados em edifícios e bandeiras; Serafina, entre imaginação e memória, suspensas em uma montanha-russa; Kassandra, entre signos e significados, distorcidos em imagens espelhadas em superfícies; e Anselma, entre imagem e realidade, replicadas na perspectiva de um hall. 

Os (des)mapas mundi produzidos por Clarissa Tossin em Unmapping the World (2011), resultados de planificações de globos desenhados em bolas de papel vegetal amassados, se contrapõem – como trabalhos de outros artistas que operam sobre os mapas - à cartografia como representação neutra, útil, eficaz e normativa. Além da desestabilização de códigos e da demarcação das distâncias entre real e representação, ou mesmo entre representação e representação, o que está em jogo é a revelação, a partir deste estratagema, da “impossibilidade de construir o mapa do globo ponto a ponto” (para lembrarmos de Jorge Luis Borges e Umberto Eco), assim como da entropia (questão igualmente tratada por Lais Myrrha, em sua Teoria das Bordas, 2007) inerente à irreversibilidade destes des-mapas em globos.

Na “re-orientação” dos mapas em direção a “contra-cartografias”, discutida por Brian Holmes e Ole Bauman, a topografia vem cedendo lugar à topologia como constante espacial. Isto significa que passam a ganhar relevo, ante a delimitação e representação métrica de áreas, a seleção e combinação de dados e conexões. Deformações topológicas hipotéticas do globo a partir do Google Earth são o que produzem em oito imagens Ana Maria Beraldo, André Regitano, Bruna Donadeli, Marco Murillo e Pedro Meneghel no trabalho Latitudes/Longitudes (2013), pelo encontro imaginário de cidades de mesmo nome, que possuem distintas latitudes e longitudes. Em cada uma delas, um condomínio da cidade de São Carlos, Brasil, é superposto à cidade “original” da qual extrai o nome e à qual pretende se vincular no imaginário. A produção artificial de cidades, vinculada à financeirização dos territórios, vai produzindo igualmente seus cheios e vazios físicos, simbólicos e subjetivos. 

Como atestam estes distintos trabalhos, nas cartografias do espaço sensível a articulação poética de espacialidades é o substrato a partir do qual a experiência contemporânea ganha visibilidade. Estão sugerindo, talvez, em um contexto de aceleração do tempo, a necessidade de se pensar uma primazia do espaço e de sua partilha."

Mapeamento realizado como parte da pesquisa para a Mesa de Abertura da Itinerância do 18º Festival de Arte Contemporânea SESC_VideoBrasil no SESC São Carlos em 06 de maio de 2014, com a presença de David Sperling e Diego Matos. (agosto 2014)


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NEC.IAU.USP


O Núcleo de Estudos das Espacialidades Contemporâneas - Instituto de Arquitetura e Urbanismo  - Universidade de São Paulo - NEC-USP vem enfocando em suas pesquisas as transformações espaciais, culturais e artísticas que têm caracterizado o mundo contemporâneo a partir de inter-relações entre arquitetura, arte, cidade e sociedade. Com enfoque interdisciplinar, sua equipe atual é composta por pessoas com formações diversas: arquitetura, artes, filosofia e ciências sociais, dentre outras. Suas quatro linhas de investigação são: transversalidades entre arte, design, arquitetura e cidade contemporânea; economia política da cultura e da arte; produção de espacialidades: processos e interfaces; imagem, espaço e cultura urbana. Pesquisadores participantes: David Sperling, Marília Solfa, Rodrigo Scheeren, Rafael Goffinet, Rafael Sampaio.

 

Outras conexões

Do Rigor na Ciência (1975), por Jorge Luís Borges (Obras Completas, Volume II – 1952-1972) [pt]


Da impossibilidade de construir a carta do império em escala um por um (1994), por Umberto Eco [pt]

 
Catálogo da 8ª Bienal do Mercosul – Ensaios de Geopoética (Porto Alegre: Fundação Bienal do Mercosul, 2011) [pt]

 
Mapping and Contemporary Art (2009), por Ruth Watson  [eng]
 

Partilha do sensível (2000), por Jacques Rancière (São Paulo: Ed. 34, 2005) [pt]

Tags
cartografia; mapa; território; política; espaço; fronteira; bordas;

Cartografias (2013) | NEC – X Bienal de Arquitetura de São Paulo 

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