Se toda realidade será sempre uma construção quando captada por uma câmera, isto é, se já não faz sentido investir na possibilidade de um olhar neutro diante do real, capaz de retratá-lo de modo objetivo e desinteressado, talvez sejam justamente os modos de ver e de interpretar os únicos temas possíveis de um documentário. Seguindo essa lógica, o foco não estaria mais no outro, mas no encontro...
Se toda realidade será sempre uma construção quando captada por uma câmera, isto é, se já não faz sentido investir na possibilidade de um olhar neutro diante do real, capaz de retratá-lo de modo objetivo e desinteressado, talvez sejam justamente os modos de ver e de interpretar os únicos temas possíveis de um documentário. Seguindo essa lógica, o foco não estaria mais no outro, mas no encontro com esse outro: nos modos de se aproximar daquilo que é diferente e de investigar e narrar essa diferença. O que sempre falará tanto de quem “documenta” quanto de quem é “documentado”. Ou daqueles que, mutuamente, se reconhecem e se constroem diante da câmera.
Pois um dos aspectos que mais chamam a atenção em Doméstica (2012), de Gabriel Mascaro (Recife, Brasil, 1983), é a opção por centrar o filme não em um retrato do outro, a empregada doméstica, mas em um ensaio sobre aproximações em relação a esse outro. Sete adolescentes são convidados pelo artista a filmar suas empregadas ao longo de uma semana, e é a partir do material coletado que o filme é construído. Assim, Doméstica acaba por evidenciar complexas relações de trabalho, poder e afeto que revelam as condições, os conflitos, os anseios e o dia a dia das empregadas, na mesma medida em que também falam daqueles que as registram e do modo como se endereçam a elas.
A estratégia de centrar a atenção no olhar mais que no objeto, tematizando relações e encontros – ou modos de ver – e questionando o próprio dispositivo documentário, é comum a uma série de filmes realizados no Brasil na última década. É o caso de Rua de mão dupla (2002), de Cao Guimarães, em que desconhecidos trocam de casa por um dia com a missão de realizar uma espécie de retrato do outro, e Santiago (2007), de João Moreira Salles, em que o diretor questiona sua própria maneira de retratar a vida do antigo mordomo da família, para citar dois exemplos. Sobre as relações que se estabelecem nesse exercício de observação do real ou do outro, Cao Guimarães pondera: “Se o meu assunto é a realidade, não estou isento dela e nem ela está isenta de mim. Neste exercício da reciprocidade, da generosidade da entrega, vários graus de subjetividade estão interagindo entre si. A questão não é objetivar o olhar diante da realidade mas mesclar sua subjetividade com a subjetividade do outro”.
Modos de ver também são tema central em Journey to a Land Otherwise Known (2011), de Laura Huertas Millán (Bogotá, Colômbia, 1983). Inspirado nos relatos dos primeiros exploradores da América, o filme investiga o olhar etnográfico e sua construção de uma alteridade exótica e distante. Embora evoquem a natureza intocada dos trópicos, as imagens são captadas em um ambiente artificial, uma estufa tropical criada em Lille, no norte da França. Trata-se, portanto, de uma realidade construída a partir de uma determinada leitura de um lugar que, aqui, é reapresentada a partir de outro olhar. A câmera passeia pela paisagem em planos não muito abertos, mas quase sempre demorados, sem narração ou qualquer tentativa de tradução daquilo que vemos. Cabe ao espectador relacionar as imagens e construir seu retrato ou reinterpretação do lugar – a partir de um olhar que também aportará ao que vê.
Já em Mirror (2012), de Tiécoura N’Daou (Mopti, Mali, 1983), a própria imagem do artista é objeto de um delicado estudo sobre o olhar. Refletida nas águas do rio, ela se apresenta desconstruída e instável, tal qual a imagem de um outro que não se deixa atrapar. Nesse exercício de reconhecimento, Tiécoura nos oferece um comentário sobre a fragilidade que acompanha toda tentativa de aproximação e enunciação – do outro e de si mesmo.
Se a indagação do outro sempre revelará algo de nós mesmos, seja nossas perguntas, seja nossos desejos, talvez o que obras como essas nos lembrem, para além do acento nos modos de ver, é que toda construção identitária se dá pelo encontro, pelo diálogo, e nunca constituirá uma entidade fixa, homogênea e estável, mas “um trajeto, uma dinâmica processual, um vir a ser”, como apontam os curadores da mostra Panoramas do Sul, cujas obras dão origem à plataforma. Trata-se, assim, de trabalhos que refletem não tanto sobre o outro, mas sobre as políticas de representação do outro e de construção de narrativas a partir de encontros ou mesclas de subjetividades.
(fevereiro 2014)
Fernanda Albuquerque
(Rio de Janeiro, Brasil, 1978) Jornalista, curadora e crítica de arte, doutoranda em História, Teoria e Crítica de Arte pelo PPGAV/UFRGS. Curadora assistente da 8ª Bienal do Mercosul (2010-2011), integrou o grupo de crítica de arte do Paço das Artes e trabalhou no Instituto Tomie Ohtake, nas áreas de cursos e publicações educativas. Também foi Curadora de Artes Visuais do Centro Cultural São Paulo (CCSP)
- Outras conexões
O cinema documentário e a escuta sensível da alteridade (1997), por Eduardo Coutinho. [pt]
Documentário e subjetividade: Uma rua de mão dupla (2007), por Cao Guimarães. [pt]
O artista como documentarista: Estratégias de abordagem da alteridade (2008), por Paula Alzugaray. [pt]
Identidade/alteridade: Espelhos (2009), por Paula Alzugaray. [pt]
O local da cultura (1998), por Homi Bhabha. [pt]
- Tags
- representação; alteridade; identidade; construção; espelho; retrato; escuta; documentário;
Santiago (2007) | João Moreira Salles
Rua de mão dupla (2002) | Cao Guimarães