"Andar, observar lugares, pessoas, situações, e compreender a rua como um laboratório possante de criação foi o primeiro passo para realização do vídeo Sergio e Simone. Estava muito interessada em desenvolver um trabalho com as prostitutas que habitam a Ladeira da Montanha, uma das áreas mais degradadas da velha Salvador e que faz a ligação da cidade-alta com a cidade-baixa. Famosa por abrigar bordéis que fizeram a iniciação sexual de muitos rapazes de classes média e alta da época (1960-70), a Ladeira da Montanha foi decaindo até se tornar um local perigoso e abandonado nos anos 1980.
Para estabelecer contato com alguns moradores e me infiltrar no cotidiano das prostitutas, passei a frequentar a Fonte da Misericórdia, minadouro que alimenta a Ladeira. Em uma das idas à Fonte conheci Simone, travesti e personagem principal desta pesquisa. Ela morava com seu companheiro em uma casa arruinada da Ladeira da Montanha. Como a maioria dos habitantes desta área, Simone era usuária de drogas, mas também cuidava da Fonte, que tratava como um santuário para culto de seus orixás. Esta história fabulosa me fez abandonar a ideia de trabalhar com as prostitutas e segui com este novo personagem.
Fiquei duas semanas ajudando Simone a viabilizar a cirurgia de Mauricio, seu companheiro, que havia quebrado os pés. Este foi o acordo para iniciarmos as filmagens. Ajudei ao menino, que me tomou como irmã, mulher branca, como eu, que há muito havia deixado em Aracaju. Realizei o vídeo A guardiã da Fonte e um mês depois da primeira filmagem, Simone entrou em convulsão por causa de uma overdose de crack, seguida de um delírio místico, no qual acreditou ter se encontrado com Deus. A partir desse episódio Simone abandonou a sua condição de travesti, voltou para casa dos pais, retomou o seu nome de batismo Sergio e se considera uma das últimas pessoas enviadas por Deus para salvar a humanidade. Segui filmando Sergio o que resultou na obra Sergio e Simone.
A vida cotidiana é constituída por uma armadura de condutas, marcada por uma barreira imaginária que separa indivíduos, que tem sua própria consciência encoberta por identidades-estigmas, imagens estereotipadas. A ordem que nos separa de outros modos de existência é fictícia. A necessidade de desobedecer essa ordem e atravessar fronteiras para aventurar-me num universo diferente do lugar no qual estou, tem motivado minha prática artística; conhecer outros códigos sociais e deixar-me afetar por eles, pelo prazer de estranhar-me e deslocar-me de meus próprios limites.
Meu trabalho é munido de um pathos antropológico, busco conhecer um mundo diverso do meu. Neste tipo de convívio cabem contradições, tensões, desafios, desconstruções, desestabilizações, mutações. O Outro não é apenas o dessemelhante – o estrangeiro, o marginal, o excluído – é também uma sensação de incompletude que nos mantém em suspenso, como inacabados, à espera de nós mesmos. Um encontro que requer tempo, cumplicidade e uma vontade de aproximar o que nos parece distante.
O estado afetivo que me aproxima e me lança em cada um destes universos, provoca uma espécie de cegueira que distorce o real – ao invés de testemunhar a fábula. Esta é a política dos encontros e é ela que estabelece o caráter dos meus trabalhos. No encontro com os indivíduos, minha presença é potencializada, torno-me personagem atuante. Desse modo, posso extrair pela interação, cumplicidade, confiança e afeto, revelações que façam desaparecer o véu identitário que encobre e neutraliza a presença viva do sujeito."
Virgínia de Medeiros em depoimento à PLATAFORMA:VB (outubro 2013)