"Desde 2007, tenho visitado o Afeganistão com frequência. Sempre que estou em Cabul percebo, cada vez mais, como o país é desenhado e moldado pela guerra. Depois de 30 anos essas imagens ainda estão lá. Não há quase lugar onde não haja sinais de traumas e danos. A geração que cresceu durante...
"Desde 2007, tenho visitado o Afeganistão com frequência. Sempre que estou em Cabul percebo, cada vez mais, como o país é desenhado e moldado pela guerra. Depois de 30 anos essas imagens ainda estão lá. Não há quase lugar onde não haja sinais de traumas e danos. A geração que cresceu durante a guerra nunca teve a experiência da paz, e de viver em liberdade em seu país de origem. A guerra faz parte de seu dia-a-dia.
A cidade de Cabul é meu campo de pesquisa. Em 2010, saí dela para visitar o Palácio Darul Aman, construído em 1920 sob o reinado do Rei Amanullah Khan (também chamado de 'morada da paz’, o lugar nada tem a ver com paz; ele mais parece uma evidência chocante da guerra). Alguns jovens soldados que guardavam o lugar me deixaram entrar para filmar. Durante a visita, eles me guiavam pelo palácio quando, de repente, um deles me perguntou se poderia cantar uma canção diante da câmera.
Naquele momento, tive a experiência de como a vida cotidiana em Cabul estava sendo moldada pelo impacto da guerra e pela situação política instável e insegura. Em um dia comum em Cabul, vê-se mais policiais, soldados, seguranças, ruas bloqueadas e presença militar do que crianças na escola.
Principalmente às sextas-feiras, muita gente vai ao zoológico de Cabul. Lá, existe um vendedor que oferece montagens com retratos dos visitantes. O cliente pode selecionar os elementos e símbolos da colagem e dar instruções claras sobre o estilo do retrato que deseja. Durante alguns dias, passei um tempo observando esse vendedor fazer colagens de fotos, enquanto conversava com ele e seus clientes.
No final, comprei uma seleção de 20 imagens. Foi o vendedor que selecionou os elementos para a colagem, e seu ‘trabalho criativo’ interferiu diretamente no desenvolvimento de Kabul Fragment 04 - Ordinary Heroes?.
Por ser uma seleção de imagens encontradas, na qual não tive influência sobre as decisões criativas ou estéticas, esse trabalho reflete os contextos social, cultural e político da capital do Afeganistão. E é por isso que a estética dessas colagens mostra como um jovem de Cabul se auto-representa hoje. As ferramentas e elementos da guerra, a cena e a paisagem fazem parte de um ‘mundo’, no qual ele é o ‘herói’ principal – o centro da história. A situação sociopolítica dá forma a outro imaginário do ‘herói’. Um ‘herói’ equipado com armas e pronto para lutar por seu país. Ele não tem medo, mas muita força.
Muitos diálogos e trocas afetivas surgiram quando a obra foi apresentada fora do contexto no qual encontrei as imagens. No momento em que alguém olha as colagens em um espaço neutro, fora do Afeganistão, outro nível de reflexão se inicia. Com o distanciamento e a falta da presença militar, o espectador pode ficar consciente – e ao mesmo tempo irritado – com a força e a agressão das imagens. Elas fazem você se sentir mal, e é assim que tais questões e reflexões podem levar a um diálogo com o trabalho."
Jeanno Gaussi em depoimento à PLATAFORMA:VB (outubro 2013)
- Dados técnicos
Kabul Fragment 04 – Ordinary Heroes? (2011) | Jeanno Gaussi
Fotomontagens | 10 imagens compradas no zoológico de Kabul, 50 × 75 cm cada