Metathesiophobia (Medo da mudança)

2011
Irineu Rocha da Cruz
publicado em 16.06.2013
última atualização 07.01.2015

"Metathesiophobia (Medo de mudança) enquadra-se em uma análise alargada das relações entre o 'dialeto' crioulo e a língua portuguesa oficial das ilhas de Cabo Verde. Esse trabalho, como outros que tenho realizado, procura intervir nos espaços de coexistência entre as formas de pensar e sentir aliadas à ambas as línguas.

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"Metathesiophobia (Medo de mudança) enquadra-se em uma análise alargada das relações entre o 'dialeto' crioulo e a língua portuguesa oficial das ilhas de Cabo Verde. Esse trabalho, como outros que tenho realizado, procura intervir nos espaços de coexistência entre as formas de pensar e sentir aliadas à ambas as línguas.

No espaço Cabo-verdiano, e em qualquer espaço pós-colonial caracterizado pela coexistência de uma língua superstrato e uma outra substrato, diversos grupos sociais constroem-se segundo modos de pensar e sentir criados à partir das relações entre esses elementos. Elaborando-se, assim, discursos identitários paradoxais. As camadas visíveis e subliminares do paradoxo interessam-me profundamente.

Este paradoxo está ancorado nas formas de pensar e sentir associados a ambas as línguas. O caso da língua portuguesa, enquanto língua europeia, como refere Gilberto Freyre, é peculiar porque o português, entrou para o mundo mais cedo do que os outros europeus. Enquanto o português vivia num tempo mítico, o europeu nórdico conquista outros mundos mais tarde, com um modo de pensar racional, cronométrico e capitalista. A adaptação do pensamento português à tecnocracia norte-europeia é problemática e nunca se liberará totalmente do mito. Veja como o Estado Novo português (1933-1974) constrói uma plataforma de auto-legitimização de um regime autoritário e/ou fascista com base na necessidade do cumprir-se o mito do destino do ser-se português no mundo.

Portanto, o crioulo cabo-verdiano justapõe a corporalidade do crioulo à Língua portuguesa,  encravada entre um racionalismo europeu e uma morbidez celestial. Para o espaço crioulo, o resultado pode ser um estado de amoralidade que quase tudo permite e aceita. Por exemplo, o traficante de estupefacientes, desde que simpático e generoso, é tolerado, pode até se tornar referência.

Metathesiophobia apresenta uma situação em que um homem e duas mulheres dividem o conteúdo de um taparuer em saquetas de plástico – em alusão à preparação de estupefaciente para venda. Se o homem chama-se Carlos, a mulher de vestido escuro é a sua irmã e a outra mulher, de vestido claro, é a amante da irmã. Elas podem não ter nome. O sistema patriarcal integralista que constitui a Língua portuguesa assim o permite.

Ele, o Carlos que esteve pela Europa querendo ser dançarino, encontra-se de volta ao Mindelo. Trouxe consigo os conhecimentos do submundo da Espanha e da Holanda e, decidido a viver confortavelmente, torna-se intermediário de compra e venda de narcóticos. A maior parte dos seus 'moves' são dirigidos para o sul de Portugal e da Espanha, mas sempre fica com quantidades suficientes para consumo próprio, venda a um grupo seleto de personalidades locais, oferecer a amigos ou pessoas influentes, e comprar favores. A sua irmã, antiga empregada numa construtora imobiliária falida, é socialmente eficaz criando espaço para que as atividades de Carlos desenrolem-se sem animosidades. A amante da irmã, é formada em turismo numa universidade local, mas até trabalhar para Carlos, era empregada numa loja que vende de tudo o que se faz na Republica Popular da China, à menos de 20 dólares.

O que acabei de contar não se vê, é um segredo.

O que se ouve, porém, é o texto de René Descartes, Meditações Metafísicas (1641), que recortei e colei aleatoriamente. A autoridade do texto, independentemente da falta de nexo do conteúdo mantém-se... creio? A determinação do conteúdo original do texto, apesar dos recortes e colagens que têm sido elaborados desde sempre, têm substanciado divisões brutas entre mente e corpo, entre sentir e pensar.

Divisões que têm configurado a forma de pensar e sentir do europeu, tal como este foi para o mundo, compreendendo e tentando reformatar o Outro à imagem do que era conveniente. O Crioulo, pela sua própria existência, por ser simplesmente visível, colapsa antigos discursos europeus sobre a relação corpo/mente, sublinhando a impossibilidade de qualquer 'geometrização' do sentir e do pensar. Este contexto, amoral/imoral/ilegal, que proponho para observação e reflexão alude a tal."


Irineu Rocha da Cruz em depoimento à PLATAFORMA:VB (outubro 2013)


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Dados técnicos

Metathesiophobia (Medo da mudança) (2011) | Irineu Rocha da Cruz
Videoinstalação | 1h40’54”, estéreo, p&b, 16 : 9, loop
 

Excerto da obra Metathesiophobia (Medo da mudança) (2011)

 

Depoimento Irineu Rocha da Cruz | 18º Festival

O cabo-verdiano fala de sua obra, que reflete sobre como narrativas filosóficas europeias são montadas, remontadas e distorcidas a fim de legitimar e manter estruturas de poder

Ações VB
18º Festival
Outras conexões

On the Iberian Concept of TimeThe American Scholar (1963), por Gilberto Freyre. Texto que influenciou as reflexões do artista sobre a língua portuguesa. [eng]

 

Aventura e Rotina: Sugestões de uma viagem à procura das constantes portuguesas de caráter e ação (2010), por Fabiana M. de Freitas Grecco. Obra na qual Gilberto Freyre busca os “Portugais espalhados pelo mundo” nas colônias do ultramar. [pt]

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