Ilú Obá de Min
Comecei a trabalhar com esse formato de “excertos” – vídeos formados por um único plano cada – no ano 2000, época em que eu e Mathias Fingermann, então meu aluno de teatro, fundamos o A.N.T.I. cinema (leia-se “anticinema”), cuja sigla acordamos em não revelar. Nós nos limitávamos a dizer que o A.N.T.I. cinema estava interessado na vida, nada mais. Como Dziga Vertov em 1923, queríamos arrancar do cotidiano trechos de energia autêntica. Como Cesare Zavattini, falávamos em deixar as coisas como elas são, quase que por si mesmas, criarem o seu próprio significado especial. Filmávamos ininterruptamente (sem cortes) por muito ou pouco tempo, elegendo posteriormente um único plano como o filme inteiro, podendo este plano coincidir com a duração da fita de vídeo (uma hora) ou durar poucos segundos. Nós utilizávamos o vídeo digital, mas, mesmo que estivéssemos trabalhando com VHS ou com película, nossa técnica seria a mesma: o “excerto de A.N.T.I. cinema”. Assinávamos nossos trabalhos como fotógrafos, nunca como diretores.
Desde então, há dezessete anos, colho trechos da vida cotidiana por aí. Os momentos menos produtivos se deram na passagem da minha câmera Sony Digital-8 (câmera que já era uma extensão de meu braço, de meu corpo) para o modelo maior Sony VX 2100 e depois, muito pior, na passagem desta para uma Canon 5D. Eu seguia trabalhando no formato de excertos – mas principalmente voltando a fitas brutas de registros feitos entre 2000 e 2007 – para escolher excertos que integram o arquivo da minha obra Projeto Mutirão. Nunca deixei de gravar novos excertos, mas não com a mesma alegria de antes, e muito raramente. Nos últimos anos, redescobri minha prática com um celular iPhone 4S, que foi o equipamento usado neste registro Ensaio Ilú Obá de Min.
O que fiz aqui foi tão somente gravar pessoas que habitavam o baixo do Viaduto do Chá, no Vale do Anhangabaú, durante um ensaio do bloco de mulheres Ilú Obá de Min. Era o último ensaio do grupo antes do carnaval de 2015, em que elas homenagearam a escritora Carolina Maria de Jesus. No lugar de registrar as mulheres do Ilú tocando seus tambores e cantando, virei a câmera para essas pessoas que ali moravam e interagiam com o ensaio como público. Os tambores parecem ter revirado toda uma ancestralidade daqueles corpos – o candomblé, o feminino, as entidades/rainhas. Prefiro não descrever e não comentar muito porque quero que as pessoas vejam o vídeo e tenham (ou não tenham) seus próprios encantamentos. Gravar em plano único é uma forma de possibilitar que o espectador ou a espectadora vivencie a duração da ação filmada, um pouco como se ele ou ela tivesse estado lá também. Mas uma coisa que posso dizer é que, no momento político atual, quando se fecham radicalmente as políticas de bem-estar social no Brasil, e o atual prefeito de São Paulo anuncia uma privatização cada vez mais intensa do espaço público e práticas de internação compulsória de usuários de crack, fica ainda mais evidente e relevante a prática de resistência do Ilú, essas mulheres negras que insistem em realizar seus ensaios na rua, nos baixos de um viaduto, engajando a população mais excluída da cidade. Como disse minha amiga Juçara Marçal, cantora e integrante do grupo, esse registro mostra, ao mesmo tempo, uma realidade dura e uma cura possível.
Observação: não uso a expressão “plano-sequência” para nomear os planos únicos, mesmo quando longos, porque, ao criar essa expressão, André Bazin estava se referindo a planos de filmes que cumpriam a função dramática da sequência de planos no esquema de decupagem clássica. Uma análise do meu trabalho exige outro vocabulário, de modo a explicitar que o que faço é tão somente extrair um trecho de um material bruto. “Excerto”, no Moderno Dicionário Michaelis, significa: (adj) tirado, extraído. (sm) trecho.
Escolas
Durante a ocupação de escolas por estudantes, em São Paulo, em novembro e dezembro de 2015 além de ter ido presencialmente a algumas delas para testemunhar e apoiar esse processo, comecei a colecionar imagens publicadas nas páginas de Facebook das autodenominadas Escolas de Luta ou Ocupações – E.E. Ana Rosa, Dica (E.E. Emiliano Cavalcanti), E.E. Fernão Dias Paes, E.E. João Kopke, Mazé (E.E. Maria José) e E.E. Salvador Allende, entre outras – e também na página do coletivo O Mal Educado. Meu interesse principal não eram imagens de marchas de rua ou de repressão policial, mas momentos onde eu percebia uma mudança espacial ou ações coletivas e mutirões de transformação espacial: carteiras escolares acumuladas nos portões das escolas, como barricadas; cadeiras em círculos (não mais enfileiradas); salas de aula tomadas por colchões; estudantes preparando refeições na cozinha da escola; estudantes fazendo faxina e arrumações diversas; estudantes pintando paredes...
Desde 2003 acompanho uma série de lutas coletivas de transformação social e espacial com uma câmera de vídeo e coleto gravações brutas feitas por outras pessoas. Exemplos: pessoas abrindo a porta traseira de um ônibus para usar o transporte coletivo sem pagar, sem passar pela catraca; ocupando terras ou prédios abandonados; pintando ciclofaixas no asfalto (antes de existirem as ciclovias feitas pela prefeitura, no caso de São Paulo); plantando agroflorestas, entre outras ações. São muitas horas registradas, que poderiam render um ou mais documentários. Entendendo essas lutas como um processo interminável – não quis delimitar um fim para esse trabalho. As pessoas que lutam por mudanças raras vezes conseguem viver aquilo que sua luta conquista, quando conquista algo. Assim, achei mais apropriado assumir o que faço como uma prática, uma ação que tem continuidade e não é direcionada para um produto. Cada vídeo do Projeto Mutirão é formado por um único plano cinematográfico, sem edição. Chamo esses planos de “excertos”. Cada excerto pode ser entendido como uma pequena peça, parte de um processo maior, carente de articulação; para que essa articulação seja coletiva – no sentido de não ser editada por mim –, há mais de doze anos levo o arquivo com esses excertos para os contextos e públicos mais diversos: pode ser uma escola de crianças, um assentamento rural, uma ocupação de sem-teto, um festival de cinema, uma universidade, uma aldeia indígena, um museu de arte, a rua etc. A cada contexto ou público específico, escolho alguns excertos para mostrar e gerar uma conversa. Todas as conversas do projeto são registradas em vídeo, e excertos reflexivos dos encontros são incorporados ao arquivo e, consequentemente, às próximas conversas.
Alguns dos planos que compõem o vídeo Escolas também integram o arquivo do Projeto Mutirão, mas um é independente do outro. Então, uma grande diferença do vídeo Escolas para o conjunto da minha produção artística recente é que, nele, eu assumo a edição. Sou eu quem define a montagem e a ordem dos 26 planos. Podemos imaginar outras sequências possíveis, e acredito que a simplicidade do vídeo possa até mesmo ensinar outras pessoas a fazer suas próprias associações, usando essas ou outras imagens. Podemos também conversar depois de ver o vídeo, e isso já foi feito em alguns contextos, com a participação de secundaristas de luta. Mas o vídeo Escolas existe como vídeo, enquanto no Projeto Mutirão o encontro, a conversa e a articulação coletiva são a própria forma da obra.
Tive muita dúvida em fazer uma obra me apropriando de imagens publicadas sem crédito de autoria na internet, sendo que a obra resultante seria assinada por mim. Mas pode existir criação e pensamento na apropriação. Em meio às imagens apropriadas, com o mesmo tratamento e sem nenhuma indicação, estão imagens feitas por mim nas escolas. Crio um contexto e uma combinação para essas imagens. A foto de um menino que corta cenouras durante o preparo de um banquete vegetariano, todo feito com a “xepa” de uma feira de rua localizada perto da escola, está próxima de fotos de produtos industrializados e de péssima qualidade presentes na despensa da cozinha da escola, todos de marcas como Friboi, Swift, Tang e Pullman. A foto de uma oficina de parkour que aconteceu em uma das ocupações vira, no vídeo construído por mim, tão somente um menino pulando o muro da escola.
A Internacional Situacionista, considerada por alguns historiadores a última vanguarda do século 20, utilizou diferentes procedimentos artísticos para fazer uma crítica à sociedade e às cidades tal como existiam e lutar contra a monotonia da vida cotidiana moderna. Entre esses procedimentos estava o detournement. O método consiste em trocar palavras de uma frase, alterando seu significado original, ou em deslocar uma imagem de seu contexto original, atribuindo a ela um novo sentido. Quaisquer elementos, não importa de onde tenham sido tirados, podem servir para que novas combinações sejam elaboradas. Talvez inspirada pelos situacionistas e por outros que, antes deles, se valeram do mesmo método em suas criações (o escritor Lautréamont, o movimento letrista), filmei fotografias de um processo de luta política e hoje desloco essas imagens para o contexto da arte. Acredito que não exista uma única forma de luta, mas várias, que podem se fortalecer mutuamente. Em um mutirão, por exemplo, todas as pessoas se ajudam umas às outras e trabalham por um objetivo comum, sem, necessariamente, realizar a mesma função. Qual o papel da ou do artista em processos coletivos, históricos e políticos? Qual o sentido de deslocar essas imagens das páginas das escolas ocupadas para uma exposição? Esse deslocamento colabora de algum modo na luta por uma verdadeira reorganização escolar, feita de baixo para cima, por estudantes e por toda a comunidade escolar?
Acredito que esse vídeo, somado a outras tantas ações, tem o potencial de colaborar na construção de um imaginário diferente. As experimentações feitas nas escolas nos mostram, de forma espacial e concreta, que é possível criar novas formas dentro das formas existentes. Ver cenas de reconfiguração de espaços de aprendizagem em uma exposição de arte pode nos ajudar a vê-las novamente no horizonte, na vida.
Graziela Kunsch em depoimento a PLATAFORM:VB (Setembro 2017)