Cuenta la leyenda que cinco siglos atrás el cielo se tiño de gris.
[Diz a lenda que, cinco séculos atrás, o céu se tingiu de cinza.]
“O Ocidente não fica no Ocidente. Ele é um projeto, não um lugar.”
Édouard Glissant, Caribbean Discourse
Mais de cinco séculos atrás, o céu ficou cinza, quando uma chuva de flechas se sucedeu à chegada dos espanhóis ao Lago Enriquillo; este é o local onde Ana Vaz filmou Amérika: Bay of Arrows (2016). Uma grande reserva de água localizada na República Dominicana, o Lago Enriquillo testemunhou o primeiro encontro entre os taínos do Caribe e os exploradores espanhóis há mais de cinco séculos. Amérika mergulha o espectador nesse ambiente à medida que a câmera, através de seu movimento constante, molda e impulsiona a narrativa. Vaz faz uso desse dispositivo como se a câmera fosse uma extensão de seu corpo. Assim, em Amérika, a câmera não é um aparelho invisível, pois seu movimento circular hipnótico imita o papel de um participante ativo, selvagem mesmo. Semelhante ao mito indígena da serpente emplumada que desce uma vez por ano do céu para a terra, as tomadas rotativas do filme também podem ser interpretadas como uma referência à relação cíclica entre o céu e a terra.
Através dessa técnica inusual, Vaz produz uma lente desorientadora através da qual o espectador vê esse lugar histórico, não de um lugar distanciado, mas constantemente consciente da construção da narrativa. Amérika representa uma das tentativas mais decisivas de Vaz de transmitir como a câmera pode tanto romper como estruturar formas narrativas.
A pesquisa de Vaz é impulsionada por uma investigação sobre as rotas históricas e antropológicas do colonialismo e sobre o impacto que esse legado pode ter sobre a evolução natural da terra. Dentro desse conjunto expansivo de preocupações, ela se concentra no choque de duas culturas, a Europa e as Américas, e investiga suas profundas implicações históricas na vida contemporânea, comumente referida hoje como a era do Antropoceno. Remetendo ao ponto da história a partir do qual as atividades humanas intervieram na geologia e nos ecossistemas do planeta, Vaz considera onde o início desta era pode ser localizado em relação ao choque de culturas. Embora não visível no filme, é preciso imaginar a quantidade substancial de artefatos taíno que se encontram sob a superfície do Lago Enriquillo, apontando para as sobreposições temporais sempre presentes, ainda que invisíveis, entre o tempo histórico e o geológico.
Texto de Carla Luccini, Nova York, 2016.