Em 25 de setembro de 2014, desapareceram 43 estudantes em Iguala, um município de Guerrero, num país chamado México. Foi um evento que sacudiu o mundo inteiro. Um tempo depois, a Anistia Internacional México convocou vários artistas para que fizessem, individualmente, uma peça audiovisual sobre o tema dos #43. Comecei então a pensar em diferentes...
Em 25 de setembro de 2014, desapareceram 43 estudantes em Iguala, um município de Guerrero, num país chamado México. Foi um evento que sacudiu o mundo inteiro. Um tempo depois, a Anistia Internacional México convocou vários artistas para que fizessem, individualmente, uma peça audiovisual sobre o tema dos #43. Comecei então a pensar em diferentes possibilidades, recolhi testemunhos, estabeleci contatos com as pessoas do lugar, li uma infinidade de notas de jornais. Era difícil, e segue sendo, explicar o por quê tinha acontecido o massacre. Por que, no desaparecimento dos #43 estudantes, participaram policiais estatais, federais, o exército, e o crime organizado? Era muito difícil explicar por que o discurso governamental minimizava um fato tão grave. Fizemos diversas perguntas que suscitaram em muitas respostas, mas em nenhuma certeza. Tomei então a decisão de reinterpretar o arquivo gerado, essa ia ser a minha matéria-prima. Com esse material tive a intenção de confrontar essa tragédia a partir de diferentes vozes. O governo se dedicava incessantemente a negar a gravidade dos fatos, o que não era estranho, mas aterrorizante: no poder, mais uma vez, o discurso era falso, insustentável e culposo. Assim começou a se armar essa peça que não tem respostas, uma peça que se compõe de perguntas.
Nesse arquivo reunido havia um material muito poderoso: o testemunho dos estudantes registrado em seus celulares ao serem emboscados pela polícia. Era o único registro em primeira pessoa que tive acesso sobre os acontecimentos dessa eterna noite, um arquivo com o ponto de vista das vítimas, e foi o que me levou a ir depurando o resto do material com o que eu estava trabalhando, tentando construir essa história do ponto de vista dos estudantes. Num desses vídeos que eu encontrei na rede, se escutava a voz de um jovem que gritava com desespero para um inimigo invisível: por que disparam? A pergunta que nos fazemos todos.
O meu ofício, ou seja, o que me dá de comer e à minha família, é a edição de imagens, ou montagem, chamem como quiser. Diariamente me maravilho com o que se esconde atrás da possibilidade narrativa que oferecem as imagens soltas, com infinitas possibilidades de serem olhadas e organizadas para gerar múltiplas narrativas. Pode-se combinar e encadear imagens e sons para elaborar um discurso de elementos que geram um novo ser, e por isso pensei que o mais sincero que podia fazer nessa ocasião, nesse convite para que outros pensem sobre essa tragédia sem respostas sólidas, era jogar com o que eu jogo diariamente: combinar fragmentos e alinhavá-los para contar uma história. Propus uma peça que buscasse que o espectador se convertesse em um dos estudantes, que se tornasse a câmera, o olho, o coração de onde se narra o fragmento do começo de um pesadelo sem resposta. Por outro lado, sempre gostei de trabalhar com arquivo e dar ordem, sentido e forma. Meu trabalho prévio consiste maioritariamente nisso, e essa peça acabou sendo parte de uma maneira de olhar materiais existentes para desentranhar uma história.
Eu nasci na Argentina em 1970. Em 1976 teve um golpe de Estado que durou dez longos anos. Minha família, como muitas, teve que partir para o exílio e o meu tio, irmão do meu pai, é um dos trinta mil desaparecidos. Tudo isso me marcou e sempre fui muito suscetível a refletir e tentar me opor às arbitrariedades do poder.
Acho que hoje em dia estamos saturados de informação, imagens, sons, e muitas vezes é necessária uma pausa para observar o que temos na nossa frente, e resignificar. Depois de um bombardeio de recopilação de vídeos de arquivos surgidos da rede, um dia parei para observar e escutar, a partir do horror, os 12 minutos registrados com os vários celulares dos estudantes que estiveram presentes no início dessa noite escura. Esse material era parte da narrativa da informação, era um arquivo que andava por ali, como tantos outros, mas que não tinha sido interpretado. Ao observá-lo com atenção me dei conta de que ali tinha uma pérola, o que tantas vezes busco para poder narrar com precisão um “ponto de vista”. Nesse material existia uma perspectiva carregada de desconcerto e medo que, de algum modo, demonstrava a inocência da Chapeuzinho Vermelho frente ao Lobo Mau, e tinha os testemunhos dos fatos, de uma perspectiva vivencial e aterrorizante.
Esses arquivos estavam carregados das incógnitas que ainda não foram respondidas, e falavam da arbitrariedade de um sistema que não sabemos do que está composto e quanto pode te devorar entre seus tentáculos, se assim achar necessário. Meu objetivo foi construir, por meio da manipulação desse arquivo, a sensação de estar no lugar desses jovens. É por isso que, mesmo borradas, eu reenquadrei e deformei as imagens, e mudei o tempo para construir o que parece ser um plano sequência, mas que na realidade não é, já que está composto pela união de diferentes fragmentos de imagem e som. Não havia a necessidade de buscar um personagem e nem de dar voz ao pesadelo: as vozes já estavam ali. O que fazia falta era dar uma estrutura para que se juntassem em uma só voz e que por meio de uma nova ordem desse a sensação do tempo verdadeiro de um acontecimento que na realidade durou muito pouco, quase nada, mas que essencialmente não acabou. Assim, as muitas vozes e os poucos segundos se converteram na ficção de algo mais próximo à angústia que não nos dá trégua, à pergunta que ainda não tem resposta: por que disparam?
Mariana Rodríguez em depoimento a PLATAFORM:VB (Agosto 2017)
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¿Por qué disparan?, 2016 | Vídeo, 2' 26"
Mariana Rodríguez
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Robert Bresson dizia que a câmera, no momento do registro, não tinha noção do que captava, mas que de algum modo, a poesia, o discurso ou o sentido, podia ser observado depois.