Já faz alguns anos que faço pinturas com composições complexas, repletas de elementos díspares combinados, enfatizados pelos efeitos de reflexão da luz e reprodução virtuosa de materiais e texturas. Geralmente retratam locais abandonados dentro dos quais busco construir narrativas fantásticas através dos elementos neles dispostos.
Nestas obras selecionadas pelo festival (Poça II/Sala de jantar e Closet/Revoada) não foi diferente quanto ao tema e ao modo de pintar. No entanto, na série Jacarezinho, 92, da qual estas obras fazem parte, desenvolvi uma forma de produção totalmente nova. Antes, a concepção das casas que eu pintava se dava por colagens, isto é, eu buscava imagens na internet ou fotografava elementos e elaborava no computador a imagem a ser pintada, buscando relações entre elementos decorativos de origens diversas – animais, vidros, luzes. Em seguida, todos eram “unidos” pela pintura, e nesse processo fui ficando cada vez mais exigente com o passar dos anos.
Foi a partir da série que expus no Tomie Ohtake no ano passado (21 naturezas mortas através de vidros fantasia – vidros que distorcem a imagem, como martelado e canelado) que, pela primeira vez, fotografei toda a cena que iria pintar. Essa ideia cresceu da escala do objeto para a escala da arquitetura, e em Jacarezinho, 92 realizei instalações temporárias na casa dos meus avós e onde há nove anos funciona meu ateliê, produzindo cenários com todos os moveis, revestimentos, objetos, plantas e animais que queria que estivessem na pintura. Primeiro fiz esboços no meu caderninho, desenvolvendo a história que queria contar em cada um dos cômodos, tentando dar conta tanto das memorias que essa casa carrega, quanto de alguns temas principais do meu universo criativo, como os reflexos, os vidros, alagamentos etc.
A pergunta era: será que consigo fazer no mundo real os mundos fantásticos que fiz anteriormente? Então alaguei a sala de jantar, construindo um espelho d’água de quatro metros por cinco sob a cortina velha da casa, enchendo-o de plantas aquáticas e rasteiras; aluguei animais que seriam soltos pela casa; busquei objetos de cena, e então escolhi o momento preciso do dia para fotografar. Depois de tudo isso, foram dez meses para realizar as pinturas em escala 1:1, e tudo mudou completamente, pois a pintura tem sua lógica própria e todos os códigos mudam. Foi o maior desafio!
Como sempre na minha pesquisa, sigo insistindo na questão do gosto, na problematização do excesso que é kitsch, mas que pode ser cafona, o belo e o senso comum. Mas esta série me levantou novas questões. A primeira diz respeito à encenação da pintura, que me fez pensar no termo “pós-verdade”. Já dizia Braque que toda pintura é um fato pictórico, não anedótico. Faz parte da historia da pintura o caráter encenado; no entanto, construir todo esse cenário e depois pintar realisticamente aproximou os limites entre realidade e ficção e deixou definitivamente a veracidade da imagem nas mãos do espectador. Uma situação bem comum no mundo contemporâneo: como confiar na publicidade, nas redes sociais, nas imagens das modelos nas revistas? Nada costuma ser verdade e não sei o quanto nos importamos com isso.
Outra questão é a do espaço-tempo. Quando eu trabalhava com as colagens virtuais, por exemplo, misturando um azulejo cubano numa casa de arquitetura clássica europeia, ou um vitral do Frank Lloyd com uma paisagem do monte Fuji, eu buscava encontrar um lugar utópico, e o teor realista-fantástico estava na questão do espaço, desse lugar “sem geografia”. Hoje, a casa retratada tem um endereço – Rua Jacarezinho, 92 –, mas o trabalho de construção da luz, a mistura de alguns objetos de cena simbólicos e arquetípicos de décadas especificas que existem nessa casa, dos anos 50 até hoje, me fizeram pensar na questão do tempo, como essas pinturas cheias de memórias nostálgicas e outras banalidades tão atuais confundem a noção de tempo. Ando pensando sobre isso.
A elaboração da serie Jacarezinho, 92 teve início em abril de 2016, e apresentei um grupo de sete pinturas na galeria Leme em março deste ano. O trabalho ainda está em andamento, estou agora continuando algumas pinturas que não entraram na exposição.
Ana Elisa Egreja em depoimento a PLATAFORM:VB (Junho 2017)