Jardim de Aclimatação XXI

2015
Debora Mazloum
publicado em 28.09.2017
última atualização 28.09.2017

O trabalho Jardim de Aclimatação XXI foi realizado a partir de uma residência artística dentro do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Ali, durante alguns meses pude estar em contato direto com o Jardim, sua estrutura artificial, no sentido da limpeza, da poda das plantas, da escolha e da combinação entre as mesmas, e pude frequentar a biblioteca que...


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O trabalho Jardim de Aclimatação XXI foi realizado a partir de uma residência artística dentro do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Ali, durante alguns meses pude estar em contato direto com o Jardim, sua estrutura artificial, no sentido da limpeza, da poda das plantas, da escolha e da combinação entre as mesmas, e pude frequentar a biblioteca que armazena diversos volumes importantes para a história do Jardim Botânico. Estar entre esse universo da biblioteca e do jardim foi como realizar uma viagem de retorno histórico à própria fundação do jardim. Foi dentro dessa pesquisa histórica que percebi a correlação da criação do Jardim Botânico com um Gabinete de Curiosidades a céu aberto. Utopicamente, o jardim poderia ser o lugar onde se armazenam todas as plantas do mundo. Dom João VI, ao criar o Jardim Botânico, criou um jardim de plantas exóticas, inclusive escrito por decreto, onde não havia nenhuma espécie nativa do Brasil. Esse dado é importantíssimo para se pensar uma certa virada ficcional que o trabalho pode ganhar, na medida da estrutura de uma alucinação.

 

Na biblioteca pude ler os relatos dos artistas viajantes que estiveram no Rio na época, assim como ter acesso à iconografia realizada por eles. Apropriei-me de diversas imagens fazendo interferências nas mesmas de modo a colocá-las nesse lugar irreal, nesse lugar de dar a ver as ilusões da representação, possibilitando a ficção, principalmente em relação ao discurso histórico hegemônico que circunda os museus de história natural, os desenhos botânicos etc. Foi como fazer uma viagem, uma viagem a outros tempos — mundos guardados dentro da estante —, onde pude perceber o dado do infinito que existe em meio às coleções. Uma colagem entre séculos.

 

A outra viagem que faço foi puro caminho. Ela foi errante e coletou, em meio à cidade, objetos e materiais que pudessem atribuir sentido à colagem dos fragmentos. A biblioteca como um mundo, a cidade como ateliê, o Saara como continente, o ateliê como casa, o jardim como um gabinete de curiosidades. Uma deriva que estruturou o pensamento, que simulou um sonho e vagou de modo a encontrar objetos que se estabeleçam na justaposição, na multiplicação de formas fragmentárias que, ao se intercalarem, criam um universo discursivo ficcional para o trabalho.

 

Esta obra é como um ponto de virada dentro do conjunto de minha produção artística. Foi a partir do processo dela que pude finalizar diversos objetos que estavam soltos dentro de minha produção, muitas vezes guardados no ateliê sem sentido, que não se amarravam com nenhum outro trabalho, estavam ali há uns dois anos pelo menos. Portanto, foi muito importante encontrar o lugar deles e o jardim acabou se tornando um ponto de chegada, assim como, a partir dele, um ponto de partida, como uma conclusão. Também coincidiu com a conclusão da minha pesquisa no mestrado, configurando, de novo, um ponto de partida e um ponto de chegada. Outro aspecto importante é que sou cenógrafa e trabalhei construindo espaços durante quase dez anos, estudando-os e fazendo-os de outra forma. Como artista, essa é minha primeira incursão no universo do espaço instalativo, uma incursão que eu já esperava há bastante tempo.

 

Entre as questões estéticas e poéticas desse trabalho, foi extremamente importante a colocação de objetos sobre a mesa, pois eles estabelecem uma conexão direta entre o tampo, a parte de cima da mesa, e uma folha de papel, ressaltando a idéia de colagem. Essa colagem quer ser atemporal, heterotópica, e pretende se estabelecer no movimento ao redor da mesa, um percurso que o espectador tem de fazer e escolher seus pontos de parada. Nesse sentido, me lembra da afirmação de Carl Andre, que "a escultura ideal é uma estrada, porque elas obrigam que sejam seguidas, que se caminhe ao redor delas." A partir desse caminho que se faz pelo trabalho está o sentido de desconstrução histórica sobre o modelo de uma história linear, eurocêntrico, que se funda sobre um ponto de vista. Tratar a história de maneira ficcional e fragmentada é tentar acentuar a construção de um novo sentido, algo como uma contra-épica, uma tentativa de relativizar o olhar, percebendo a história como a construção de uma narrativa do olhar de quem relatou a história dos outros. O trabalho pretende relativizar a construção do saber calcada no ideal iluminista, racionalista e classificatório, no qual nossa sociedade foi fundada. Pois, com ele, tendemos a colocar as coisas em quadros, a unificar saberes, nivelar os povos e subtrair suas diferenças. A percepção é que nosso mundo globalizado contemporâneo se estabeleceu a partir dessa fórmula.

 

Debora Mazloum​ em depoimento a PLATAFORM:VB (junho 2017)


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Dados técnicos

Jardim de Aclimatação XXI, 2015 | Instalação
Debora Mazloum

Vídeo sobre a exposição Amor: Luiz Zerbini no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2012.

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Outras conexões

"Não há nada de natural nos museus de história natural, a natureza é simplesmente mais uma ficção dos séculos XVIII e XIX. " A afirmação de Robert Smithson é, para o trabalho, mais que uma referência, um pilar de sustentação que o envolve. Aliado a esse pensamento vem o livro de Michel Foucault, “As palavras e as coisas”, onde ele examina como a estrutura de pensamento muda, desde a Idade Média até o surgimento do homem iluminista, pós-renascimento. Pois é nesse momento que as ciências naturais se tornam a descrição do visível e estabelecem o paralelo de verossimilhança com a realidade, colocando o discurso histórico neste lugar de verdade única e universal. Outra referência importante na estruturação desse Jardim é o trabalho do artista plástico Luiz Zerbini. Além de um grande apreciador do universo da botânica, na exposição intitulada AMOR, o artista utilizou uma mesa central no MAM-Rio, e essa mesa funcionava como uma certa "memória do processo criativo." Zerbini também expôs no Jardim Botânico do Rio um trabalho intitulado Gabinete de Curiosidades de Domenico Vandelli. Aqui, nesse ponto, as referências se intercalam, se dissipam, indo para todas as missões artísticas que ocorreram no Rio, desde os relatos dos artistas viajantes, as pranchas de gravura, o material de botânica e toda a história que envolveu a criação do Jardim Botânico, até a chegada da corte Portuguesa no Rio e seus desdobramentos.

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