Ficcionalizar o real é mestiçar a percepção. No cais de Remanso onde fiz pré-produção do curta-metragem 1978 - Cidade Submersa, foi onde pesquisei o objeto desta obra: um pescador do tempo da cidade desaparecida e seu barco.
Tendo encontrado o barco, fui ao encontro do barqueiro, que curiosamente trabalhava como pedreiro na construção de uma casa na “Remanso Nova”. Quando vi o pescador que perdeu uma cidade inteira e continuava a construir uma cidade, também com o ofício de pedreiro, percebi que tinha encontrado exatamente a pessoa imaginada para aquela ficção bastante real! De volta ao cais, encontrei o restante da tripulação que sempre acompanha Rodolfo e então o conjunto estava formado!
A realização de 1978 - Cidade Submersa foi muito corrida, foram dois dias para a produção e a filmagem. Não tinha um roteiro escrito, mas as ideias que circulavam em torno de Cidade Submersa corriam por minha imaginação em fluxo rápido, os dois tempos do filme eram simultâneos. A história do pescador que borra a memoria ao navegar sobre ela gera um segundo passado contínuo a transcorrer sob o lastro da nau. O mar do navegante é constituído de memórias entre um ponto e outro. O passado agora indistinto transborda em Sobradinho; no interior da Bahia vazam muitos vazios.
Mapear outras realidades por meio da arte é pensar territórios imaginados para o não tomado por cegueiras voluntariosas. Aí, ondas vazias jogam os sentidos contra o que esfacela o ser que, destituído de passado, torna-se o [de-existir]. Acho que o desafio da arte é tentar, de forma direta ou por meio de recursos poéticos, restaurar o estranhamento na vida e a inquietação dos desejos. Na vida e na arte a fronteira talvez seja um labirinto de desejos onde o se perder e vivenciar o torpor dos sentidos seja o encanto que nos faz existir.
No meu trabalho, a minha tentativa é sempre esta: perceber a possibilidade de estranhamento da repetição e recuperar o incômodo perdido e, com isso, voltar a sentir. A obra tem inspiração no dia-a-dia, nas histórias não contadas, no lugar aparentemente indistinto, ao cruzar essas insurgências acontece a obra propondo fabulações.
Os fatos puxam a história para si, pois nos repetimos ciclicamente, como um redemoinho centrifuga os tempos como em lapsos de memórias. É um sendo contínuo como na obra O Mundo de Janiele, ou um apagamento que a saudade não permite, como em 1978 - Cidade Submersa, ou ainda na obra Águas, em que o afogamento de si indica um eu tão profundo e largo quanto o mar. E em Rabeca, em que o banzo sonoro leva a mergulhos nos modos de sentir o tempo via fluxos de sons embrenhados na paisagem do sertão.
Envolver e ser envolvido na obra em curso é sentir os desdobramentos rompendo delicadamente as fronteiras e ampliando-as como em um mar incessante com margens aprofundadas na obra em direção ao que cada obra reivindica para si. Mas o sentido de tudo isso está no fazer acontecer a obra e isso só acontece estando na fronteira, no abismo que separa e une pessoas, grupos, culturas. A ideia de corpo expandido para identidades compartilhadas é o meio para a conformação de um outro espaço que não é território, e sim fronteira coabitada. Tempo, versos, memórias que se mestiçam na distopia que a obra inventa para indicar uma realidade elucubrada. O que estava mais ou menos presente desde sempre era um certo desejo de estratégias para fazer surgir o novo tendo como ponto de partida perdas de sentido, quero dizer, tentar chegar a novas questões desestruturando o estabelecido. Essa talvez seja a questão que move o meu processo, levando em consideração o que existe em qualquer tempo. Para o que ainda permanece latente e que ainda não tem forma, recorro à intuição para perceber estruturas não reconhecíveis, que estão por trás do que é dito ou visto. É um embate reconhecer estruturas antigas que se atualizam para retirar as camadas de véus que as encobrem, muitas vezes estruturas sem forma e vazias que se mantêm sobrepostas ao aparente como parasitas que drenam a potência do vital. Então, o que faço em relação às forças de manutenção do poder ao discutir corpo e identidade, lato sensu, é por em xeque essas estruturas adjetivantes que tentam a pacificação e anulação dos sentidos.
As pesquisas para realizar os projetos em vídeo são mergulhos. Geralmente escolho uma situação, lugar ou pessoa que funcionam como canal de mergulho nas filmagens para documentário e ficções como em Canto Doce - Pequeno Labirinto. Preciso tomar emprestada a experiência do outro para adentrar o universo da proposta. Sobretudo quando o processo transcorre na vida do outro, é uma tentativa de imprimir no filme as realidades subjacentes do outro, uma relação direta entre as minhas subjetividades e as subjetividades do objeto da ação filmada. O real é sempre ficção de alguém em seu modo de perceber e construir o mundo. Esses modos de percepção e operação são o que são e implicam em múltiplos véus de aparências, subjetividades. A intuição é o meio que permite aliar minhas subjetividades às subjetividades do outro, é uma negociação que pode permitir esse mergulho e, com isso, gerar visibilidade para coisas que já existem ou que ainda sejam realidades latentes.
Essa minha discussão sobre as realidades pode ser entendida como o transtorno nos processos de estranhamentos, onde realidades simultâneas podem ser versões incessantes, e talvez por isso que tento romper o lacre dos véus para deixar vazar versões de estranhamentos que se dão entre o real e a ficção. O momento tal qual aparenta, visto apenas como se apresenta, parece pobre por tentar se encerrar em si. O que é não é o que aparenta ser! Retirar os véus é descortinar estranhamentos que lubrificam a nossa percepção.
Caetano Dias em depoimento a PLATAFORMA : VB (março 2017)