Uyuni

2005
Andrés Denegri
publicado em 16.02.2017
última atualização 17.02.2017

Uyuni não foi realizado a partir de nenhuma pesquisa, mas de um gesto espontâneo. Eu gosto de filmar, e disfruto disso. Do exercício desse prazer nasceram as imagens que logo se transformaram neste vídeo. Foram registradas no fim de uma viagem de dois meses pelo noroeste argentino e por várias cidades da Bolívia. Na minha mochila, eu levava três...


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Uyuni não foi realizado a partir de nenhuma pesquisa, mas de um gesto espontâneo. Eu gosto de filmar, e disfruto disso. Do exercício desse prazer nasceram as imagens que logo se transformaram neste vídeo. Foram registradas no fim de uma viagem de dois meses pelo noroeste argentino e por várias cidades da Bolívia. Na minha mochila, eu levava três câmeras: uma Canon A1 de fotografia em 35mm (que eu amava e que logo me roubaram em Bogotá), uma Sony Hi-8, e uma de Super 8, provavelmente um aparelho simples da Canon, já não me lembro o modelo. Durante a viagem tirei apenas algumas fotos, as câmeras de cinema e de vídeo não saíram das suas capas. Não me preocupava voltar sem ter filmado. Chegando na cidade de Uyuni para tomar o trem que me levaria para a fronteira com a Argentina, me deparei com as saídas suspensas, mineiros tinham paralisado as vias como protesto para condições mais dignas de trabalho, e isso me forçou a prolongar minha estadia em Uyuni. A incerteza era total, durante uma semana voltei para a estação todas as manhãs e a promessa era sempre a mesma: o trem sairia no dia seguinte. O trem nunca saiu. Eu não tinha dinheiro para fazer a excursão ao famoso salar perto da cidade, para onde só se vai para tomar o trem ou visitar o salar. A única coisa que eu podia fazer era filmar, registrar as amplas e áridas ruas de Uyuni, e o fiz com as duas câmeras, ambos os braços e os dois olhos; tudo ao mesmo tempo. Tentei gerar o mesmo enquadramento com a câmera de vídeo e a câmera de Super 8, tentei registrar a mesma vista, ao mesmo tempo, em dois formatos diferentes. Entendia que o resultado ia ser tão similar como diferente. Ao chegar em Buenos Aires, guardei essas imagens – o rolo de filme e a fita de vídeo – em uma gaveta, onde ficaram por dois ou três anos. Em 2004, ganhei uma bolsa para uma residência no Wexner Center for the Arts. O projeto apresentado para essa bolsa surgia de uma longa pesquisa sobre antigas igrejas católicas, parte do patrimônio arquitetônico de Buenos Aires. Era ideal para ganhar uma aplicação, mas super chato, algo que, sinceramente, não me interessava realizar. Ao chegar em Wexner, confessei minha total apatia pelos edifícios religiosos do século XIX, e propus trabalhar com as imagens que tinha filmado na Bolívia – eu tinha escrito para elas um diálogo que gravei com pressa um dia antes de sair de Buenos Aires. Algumas semanas depois, recebi a fita de Uyuni em uma sublime Betacam SP.

 

Uyuni foi uma instância de ruptura na minha produção. É um vídeo sempre bem recebido, que em seu momento teve muito reconhecimento e me abriu muitas portas. É um trabalho que amo, ao qual estou muito agradecido. Mas fato é que o maior peso dele em minha produção foi quando pensei que, para mim, era muito simples fazer centenas de vídeos como esse, poderia fazer um por semana, sem muito esforço. A fórmula é muito simples: lindas imagens, um diálogo simpático – acessível, mas não estúpido –, e um tom geral que convida amavelmente à contemplação e ao gozo, sem deixar de lado algum traço de pensamento progressista, que a classe média intelectualizada tanto gosta de encontrar em toda obra. Já tinha dado um primeiro passo nessa direção uns cinco ou seis anos antes, quando fiz Cuando vuelvas vamos a ir a comer a Cantón [Na sua volta vamos ir comer em Cantón]. Decidi não me repetir, pensava que a arte deveria ser mais contundente, conceitualmente categórica, longe de toda forma de entretenimento. Seguramente me equivoquei, poderia ter percorrido um caminho de aprofundamento desses elementos, que para mim pareciam pouco, mas em algum sentido eu os aproveitava. Não quis, não pude. Em todo caso, isso me levou a uma pequena crise que me estimulou a buscar alternativas. Assim, comecei a jogar com projetores de Super 8 e dei o passo necessário que me levou às instalações que faço desde 2006 com diferentes formatos de filme. Pensado assim, Uyuni foi importante no sentido negativo. Mas é um trabalho que sempre está presente, não passa um ano sem que alguém comente sobre ele, que algum curador peça para uma mostra, que algum jovem o descubra e decida me escrever algumas linhas. Nesse ir e vir acho que está a base de um novo projeto, uma série de vídeos que começarei este ano e que tem o título provisório de Imágenes conversadas [Imagens conversadas].  

 

Antes, tinha dito que gosto de filmar. Isso pode parecer muito simples, mas para mim é importante assinalar que conota algo significativo: que meu gosto por filmar significa que odeio as filmagens. Não se costuma tratar da diferença entre essas duas atividades. Nas escolas de cinema, o prazer que filmar pode gerar é deslocado pelo modelo de produção industrial: te ensinam como se fabrica um filme. Na base desse gesto reside um sólido e sutil elemento ideológico: a funcionalidade (única de valorização do capital investido) está na base de todo o pensamento capitalista. Sou apaixonado por filmar, mas odeio as filmagens. Acho que poderia comparar com a diferença que existe entre o prazer de dançar – em uma festa, com amigos, só no quarto com a música no talo – e da dança como disciplina e profissão. A dança me entedia, costuma me parecer grotesca, prefiro a festa. E não tem nada que me pareça mais tedioso que uma filmagem, prefiro a dança.

 

Acho que é por isso que quando comecei a estudar cinema, rapidamente me relacionei com o vídeo (nesse momento existia uma diferença substancial entre cinema e vídeo). O vídeo me dava uma independência total, me permitia filmar em qualquer momento, sem muita equipe em volta nem tanta pré-produção. Nos anos 1990, sempre ia com uma câmera de vídeo na mochila, quanto menor, melhor (Uyuni nasceu dessa maneira). Hoje continuo essa linha de trabalho nos meus Diarios cuadro a cuadro [Diários quadro a quadro] (série de filmes em Super 8), e no projeto coletivo This is Just to Say. Nunca escrevi um roteiro, no meu trabalho a imagem sempre vem primeiro (falo dos trabalhos monocanais, as instalações têm outra lógica), uma imagem que surge do prazer de filmar.

 

Não condeno as grandes filmagens, nem as pequenas (o cinema independente é cinema industrial), simplesmente não me interessam, não me dão prazer. Parece-me valioso pôr sobre a mesa essa diferença poética, que necessariamente congrega elementos estéticos e ideológicos, entre as duas instâncias de produção de imagens: a da filmagem e a de filmar. 

 

Andrés Denegri​ em depoimento à PLATAFORMA:VB (janeiro 2017)


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Dados técnicos

Uyuni, 2005 | Vídeo, 8’8"
Andrés Denegri

Cuando vuelvas vamos a ir a comer a Cantón (2001) | Andrés Denegri

O texto sussurrado de uma pequena carta de amor transcorre pela imagem de quatro fotografias.

Ações VB
15º Festival
Resistir, Reexistir
Outras conexões

Tenho vergonha em admitir, a lista é formada por um sem-fim de lugar comum. No momento em que filmei Uyuni, estava submergido na literatura de Sam Shepard, o texto da voz em off tem, sem dúvida, uma forte influência de Crônicas de motel ou de Cruzando o paraíso, claro que moldado por um espanhol portenho. Também lia muito Roberto Bolaño e Juan José Saér, La mayor me partiu a cabeça, mas sua influência apareceria mais adiante em outro vídeo. E a partir do cinema de Chris Marker, Win Wenders dos documentários (não o das ficções, ainda menos o das ficções realizadas a partir de 1986), Harum Farocki, Agnés Varda, James Benning… a lista é longa e conhecida, nada excepcional. Talvez a única influência singular seja um vídeo que vi logo que comecei a estudar cinema, realizado por uma artista plástica que fez no máximo três vídeos: Tango: el narrador (1991), de Luz Zorraquín.

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