O projeto não foi pensado antes de eu realizar minha primeira viagem à Polônia. Eu nunca tinha ido para lá e muito menos tinha pensado que teria coragem de ir. Minha chegada à Polônia foi a descoberta de que eu estava chegando a um lugar do qual eu não tinha referência alguma, muito embora toda minha família seja de origem polonesa e judia, de pessoas que vieram para cá logo depois da Primeira Guerra. Era um hiato; nunca falaram, nunca comentaram. Não foi um processo muito convencional para mim. Em geral, enquanto eu faço as imagens, já desenho um processo na minha cabeça e, no momento em que consigo configurar um título, a obra sai. Neste caso, foi totalmente diferente, pois não tinha as imagens; elas foram feitas um pouco como em um estado de hipnose, em que eu ia captando e fotografando. Quando cheguei ao Brasil, fiz um “download” espiritual, conceitual e visual, e o título nasceu depois que fiz a primeira edição de umas das partes do projeto, que é o vídeo Quanto pesa uma nuvem?.
O formato das obras foi se constituindo a partir de perguntas. Se por um lado eu passei por essa experiência de um estado de não-imagem para um estado de imersão nas imagens, sem saber bem o que iria sair, por outro lado a viagem inteira foi acompanhada por um processo de multiplicação de perguntas, que fui anotando e que constituíram um pequeno diário de bordo. Essas perguntas deram a pauta para o que se transformou depois na fantasmagoria do vídeo Quanto pesa uma nuvem?, na narrativa do áudio e nos postais da obra Perturbadoramente familiar. Nossa decisão de trabalhar com carimbos foi uma decisão posterior, o que acaba tendo uma dupla referência. Por um lado, uma referência muito violenta e impossível de apagar, muito ligada às entranhas dessa viagem, que é o próprio processo de tatuagem no corpo, de uma experiência dolorosa que não se apaga nunca mais. E, por outro lado, uma desmontagem da burocracia e tecnologias de controle nazistas, implacáveis por meio de um artificio, que era oferecer às pessoas a possibilidade de carimbarem as minhas questões existenciais em superfícies diversas, que vão do corpo delas aos postais. Em síntese, a obra Perturbadoramente familiar foi o processo de “download” dessa viagem. Nela combinam-se a narrativa e as imagens trabalhadas, editadas, isoladas e recombinadas, como que seguindo um ritmo quase foucaultiano. Foucault dizia que os documentos, para serem entendidos, tinham que ser tratados como monumentos, ser desmembrados, desorganizados e remontados até que pudessem dar voz ao seu sentido sem um texto que os explicasse de antemão. No caso, eu acho que as fotos foram meu processo de documento-monumento, de sair dessa esfera da superfície bidimensional colorida, desconstrui-la e reorganizá-la junto com os fragmentos das minhas histórias e descobertas.
Quando entreguei a primeira versão do vídeo com o título para a Ana Pato, curadora da exposição, ela me deu um texto do Vilém Flusser em que ele narra um dia de neblina (“Natural:mente – vários acessos ao significado de natureza”). A partir desse momento, decidi que adotaríamos a ideia do diário sendo contado em áudio e faríamos uma peça sonora sobre a viagem. E nesse processo me descolei completamente do texto do Flusser. Inclusive, cito outros dois autores ao longo da narrativa: um é o Hal Foster, e o outro é o Andreas Huyssen, devido a algumas questões que me impactaram muito. Uma é a capitalização do design, que vai “revitalizando” as coisas e exterminando qualquer memória que tenha vivido ali, e a outra vem de um trecho que sempre tive dificuldade de entender, de autoria do Huyssen, que é certamente um dos maiores especialistas em ruínas, no qual ele dizia que o século XX não tinha sido capaz de produzir ruinas, só escombros, o que entendi literalmente depois que fui à Polônia.
Eu fui a lugares muito diferentes, não fiz uma viagem convencional, para cidades relacionadas às histórias da família. Cada um dos meus avós veio de um lugar diferente. Minha avó paterna era de Varsóvia, e meus avós maternos eram de uma cidade bem pequena chamada Przemyśl. Meu avô paterno era de outra cidade minúscula, Dęblin. Fui a Varsóvia e depois a Cracóvia porque é uma cidade tombada e é o lugar que as pessoas usam de ponto de partida para ir a Auschwitz, que também visitei, pois, infelizmente, não deixa de ser uma cidade da família. Em Przemyśl, a cidade da minha avó, tive um guia descendente de judeus, que me levou a um passeio completamente nonsense, em que ele ia me mostrando e dizendo “aqui era”, “aqui foi”, “aqui existia”, e então lhe perguntei: “Como será que é viver onde tudo era?”. Os cemitérios foram saqueados pelos nazistas, que usavam as pedras dos cemitérios para pavimentar as estradas, apesar de serem cemitérios muito antigos, e o que mais me impressionou no cemitério em Przemyśl não foram as sepulturas vilipendiadas, mas as sepulturas posteriores, pois não tinham um nome, eram de corpos que nunca foram reconhecidos, que ninguém sabe de quem são, o que me perturbou bastante. Eu fui à cidade de meu avô, Dęblin, que é uma cidade minúscula e um dos lugares mais esquisitos que eu já visitei na vida. Fomos num domingo e não havia uma alma viva na rua, apenas um mendigo bêbado. A área onde era o gueto praticamente parou no tempo. Apesar de ser super-habitada, mesmo hoje as ruas são de terra, as casinhas são de madeira, e havia um céu azul com um tom de azul que eu jamais tinha visto, e foi onde então parei pra me perguntar se existe azul cor de vazio. Então cada lugar foi sugerindo questões e perturbações e perguntas até mais transversais. Depois dessa viagem, cheguei a me perguntar se os judeus eram os negros da Polônia, se a Polônia é a nossa África, porque apesar desse estranhamento, é disso que o trabalho trata também; é a relação de pertencimento físico, cultural, e de referências, que de alguma maneira estavam em mim e foram trazendo essa situação meio de África, de diáspora. Mas, diferentemente do caso africano, em que eles foram sequestrados, conquistados, esta é uma diáspora sem retorno possível; ninguém quer mais voltar.
É a primeira vez que me coloco pessoalmente em um trabalho. Ainda estou com um estranhamento muito grande devido ao meu modo de captar imagens, pois elas nunca têm gente. Eu me esforço para chegar a um nível de abstração do enquadramento em que as pessoas são suprimidas. Logo, colocar gente, a mim mesma e tudo em primeira pessoa é uma experiência única. Estou retomando uma metodologia de trabalho que criei com a Ana Pato na 3ª Bienal da Bahia, que foi um momento de virada muito grande no meu trabalho, quando acabei trabalhando com um áudio meu narrando a história de um lugar. E isso foi uma coisa que a Ana queria de volta nesse projeto, minha voz dentro dos acontecimentos, me desafiando a dar voz a mim mesma.
Esteticamente, o fato das imagens serem tão imprecisas, como que em um processo de contínuo apagamento de si mesmas, se dá por conta desse diálogo com essa história sem rastros que eu vou contando e descobrindo ao longo do caminho. Acho muito importante deixar claro que não sou fotógrafa ou cineasta, e não tenho uma cultura de produção de vídeo enquanto linguagem videográfica. O que me parece é que venho me dedicando há anos a fazer imagens. Essa prática é, para mim, um território que exploro de varias maneiras, seja através de imagens tocáveis de alguma maneira, como nos processos interativos, ou de imagens fixas ou em movimento, mas sempre como território de imagens. E me interessa essa confusão entre os limites de cada uma, se eu fotografei e animei, ou se animei e descontruí, ou se captei e produzi o still; essa perda de referências é um ruído que me interessa explorar.