O Profundo Silêncio das Coisas Mortas

1988
Rafael França
publicado em 01.04.2016
última atualização 01.04.2016

“A videoarte completa vinte anos de existência, uma história curta, mas atribulada, com fases e estilos distintos. Nesses anos, críticos e historiadores de arte têm tentado interpretar essa história e criar uma teoria crítica para analisá-la. Recentemente, foram organizadas mostras retrospectivas com o objetivo de fazer um levantamento do que...


Leia mais +

“A videoarte completa vinte anos de existência, uma história curta, mas atribulada, com fases e estilos distintos. Nesses anos, críticos e historiadores de arte têm tentado interpretar essa história e criar uma teoria crítica para analisá-la. Recentemente, foram organizadas mostras retrospectivas com o objetivo de fazer um levantamento do que foram esses anos de atividade. Publicações de textos críticos e históricos proliferaram, fazendo da videoarte um dos fenômenos da arte moderna que mais têm resistido à interpretação e à assimilação.

Durante longos períodos da história, a forma de percepção sensorial humana se altera à proporção do modo de existir da humanidade. A maneira como a percepção sensorial humana é organizada, o meio em que ela se realiza, são determinados não apenas pela natureza, mas também por circunstâncias históricas.[1]

É ao modernismo que a videoarte deve os parâmetros que dirigiram seu desenvolvimento nos primeiros anos, tendo conhecido momentos de rebeldia, engajamento social e político, e uma preocupação profunda acerca do discurso sobre si mesma.

Como forma de arte aliada aos desenvolvimentos tecnológicos, ela conheceu um desenvolvimento mais rápido e radical do que qualquer outra forma de arte do século XX, em consequência da rapidez da revolução tecnológica. Como forma de arte relacionada às artes plásticas, passou pelo abstracionismo, pelo estruturalismo, pelo pop...

No entanto, foi como filha bastarda da televisão que a videoarte se mostrou mais surpreendente. Sua revolução, ainda em processo, é cada vez mais inevitável.

É insensato desprezar um inimigo, especialmente um inimigo mais poderoso, mais velho, que por um acaso também é uma mãe terrível. Assim, é da televisão que devemos partir ao analisar o vídeo, porque se houve algum fator definidor das propriedades formais e técnicas do vídeo como meio, esse fator foi a indústria da televisão.[2]

Num momento em que videoartistas estão reagindo violentamente à televisão comercial, Antin percebe que essa luta provavelmente será vã e que a videoarte talvez venha a se unir a sua mais poderosa inimiga, que é também sua mãe.

Sob o ponto de vista modernista, revolucionário por natureza, essa perspectiva seria simplesmente inaceitável. Antin escreve para o artista dos anos 80, com a perspicácia do observador sem preconceitos.

Na década de 80, o modernismo torna-se um movimento institucionalizado, e seus artistas, que, num primeiro momento eram representantes de uma classe resistente, imediatamente tornam-se os clássicos do século XX. Mais uma vez, os movimentos radicais desse século são absorvidos e assimilados. Dadaísmo, surrealismo, cubismo, expressionismo, todos são devidamente assimilados pelos mecanismo de classe dominante que mais os combatiam.

A videoarte, inserida no contexto modernista, desenvolveu-se numa dinâmica influenciada em parte pelo meio artístico e em parte pelos meios de comunicação de massa.

O desenvolvimento tecnológico ocorre paralelamente às transformações sociais e políticas e, mais do que qualquer outro, é o responsável pelas mudanças radicais no desenvolvimento do estilo da videoarte.

A evolução de equipamentos de analógicos a digitais, o comercial de 15 e de 10 segundos de duração, os recursos de processamento de imagens em preto e branco para cor e os processos de gravação em fitas de uma polegada trouxeram mudanças nos modos de produção e estilo da videoarte. Iniciada como fenômeno tipicamente modernista, passa por transformações de características pós-modernas em seu relacionamento com os meios de comunicação de massa, com o espetáculo e com os modos de narrativa.

A volta à narrativa acontece, entre outros fatores, por um esgotamento da estética estruturalista e por uma mudança nos mecanismo controladores da produção artística. Essa mudança também colabora para uma aproximação maior entre a videoarte e a televisão comercial.

Na televisão comercial, os videoartistas perceberam uma fonte de inspiração e intervenção de ordem estética e tecnológica. Estamos num momento em que os dois meios iniciam uma intensa troca de valores e em que a videoarte inicia uma de suas mais profundas transformações, dos valores de resistência do modernismo aos valores de assimilação do pós-modernismo.

A televisão necessita de cabeças novas e criativas para melhorar seu conteúdo. Os videoartistas, que há mais de vinte anos esperam ter acesso a equipamentos com qualidade radiofônica, tiveram de se concentrar no conteúdo, mesmo sendo esse conteúdo essencialmente artístico. Agora, nesta década, eles já se encontram em condição de produzir programas com qualidade radiofônica e com um conteúdo que é não apenas necessário, mas também desejado.[3]

O videoartista de hoje está interessado em atingir um publico acostumado com uma linguagem de televisão, que, em vez de ser combatida, está sendo utilizada para a transmissão de conceitos teoricamente revolucionários. O artista preocupa-se com um acabamento profissional para seu trabalho, com interesse especial pelo uso de novas tecnologias, com o objetivo de aprimorar a apresentação de suas ideias. O artista produz seu trabalho em estúdios de televisão comercial, com equipamentos de produção e pós-produção de última linha. É a arte que convive com a tecnologia. E a televisão comercial está atenta a essa transformação e explosão de criatividade, está atenta ao desenvolvimento de profissionais vindos do campo da videoarte, contratando-os para participar de suas equipes de trabalho. O artista sai da solidão de seu estúdio para novamente trabalhar em equipe.

O videoartista de hoje necessita de um vocabulário que combine a experiência estética ao conhecimento de eletrônica, computação gráfica e edição, um vocabulário que comunique suas ideias a toda a equipe, desde o iluminador até o engenheiro eletrônico. Seu trabalho, quando produzido para a televisão comercial, não vem assinado, mas se seu estilo for marcante, será através desse estilo que ele terá novamente o poder de transformar o padrão visual de sua audiência.

Nesse momento do desenvolvimento artístico do século XX, a posição social do artista, imutável desde o século XVI, começa a ser questionada. ‘Quem são nossos artistas?’ e ‘Qual sua função social?’ são as perguntas realmente pertinentes aos que trabalham com videoarte.

Podemos legitimamente falar de arte cinemática e arte visual, embora não se trate da mesma coisa. Mas o termo ‘vídeo’, que certamente continuaremos a usar, refere-se somente à arte, e não ao objeto do desejo cinemático que, na verdade, requer nossa atenção. O que realmente queremos dizer com o termo ‘videoarte’ é cinema pessoal praticado eletronicamente.[4]

Com a tecnologia digital, a videoarte começa uma fase de seu desenvolvimento tão importante quanto o acesso aos sistemas de edição nos anos 70. As realidades artificiais invadem o pensamento do videoartista, que passa a manipular esse dado extra em seu trabalho. Os efeitos especiais se proliferam e dão ao artista a capacidade de manipular os códigos visuais após a gravação. A tecnologia digital oferece ao artista a possibilidade de produzir e transformar uma videotape por meio de inserção de um frame que não tenha sido gravado a partir da realidade que se apresenta à câmera de vídeo. Agora, mais do que nunca, passa a ser falsa a ideia de que a televisão reflete o mundo como o vemos. Ingressamos na produção de realidades digitais.

Esse desenvolvimento tecnológico reflete o atual momento cultural e social, em que a ideia de espetáculo invade o cotidiano, distanciando cada vez mais o cidadão comum de sua realidade, em que as informações transmitidas pela televisão retratam cada vez menos a realidade como ela é, em que a imagem eletrônica é invariavelmente ‘melhor’ do que real, em que o espetáculo permeia todas as ações cotidianas e em que o espectador quer mais sentir-se envolto por algo que não existe.

E é assim que presenciamos um dos momentos mais polêmicos vividos pela videoarte desde seu nascimento, com seus produtores divididos em duas facções radicalmente distintas. De um lado, estão aqueles que desejam continuar associados aos meios de produção das artes plásticas, trabalhando como artistas modernistas, solitários, e repudiando os valores da televisão comercial com uma atitude conservadora, interessados em mostrar seus trabalhos em galerias de arte e museus, para um publico acostumado com os valores das Belas Artes. De outro, estão aqueles que, através de uma atitude revolucionária e experimental, interessam-se por produzir seus trabalhos aliados à televisão comercial, colocando a videoarte em lugar de destaque no ar; interessam-se por revolucionar e transformar a linguagem da televisão, procurando atingir um publico maior, e principalmente por modificar a posição estática que o artista visual tem há quatro séculos na hierarquia social.”

[1] Walter Benjamin, ‘A Obra de Arte na Era da Reprodução Mecânica

[2] David Antin, ‘Video: The Distinctive Features of the Medium

[3] Lorne Folk, ‘The Second Link & The Habit of TV’

[4] Gene Youngblood, ‘A Medium Matures: Video and the Cinematic Enterprise

Texto de Rafael França extraído do catálogo geral da 19ª Bienal Internacional de São Paulo, Fundação Bienal, 1987, pp. 359-361


Reduzir texto -
Dados técnicos

O Profundo Silêncio das Coisas Mortas, 1988 | Vídeo, 7’15”
Rafael França

Ações VB
Acervo Videobrasil em Contexto #2
No Acervo VB
Comentários