Desvios, Derivas, Contornos

2007
Lucas Bambozzi
publicado em 20.02.2016
última atualização 04.04.2016

Desvios, Derivas, Contornos foi feito em grande parte a partir de material ‘acumulado’. Trata-se de um vídeo que relaciona imagens a certos arquétipos da videoarte. Ao mesmo tempo, comento um estado pessoal, de desencanto com certos caminhos trilhados, influenciado também por certo vazio ou descrença no amor. As imagens vão se acumulando e,...


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Desvios, Derivas, Contornos foi feito em grande parte a partir de material ‘acumulado’. Trata-se de um vídeo que relaciona imagens a certos arquétipos da videoarte. Ao mesmo tempo, comento um estado pessoal, de desencanto com certos caminhos trilhados, influenciado também por certo vazio ou descrença no amor. As imagens vão se acumulando e, em algum momento, surgem conexões possíveis entre elas. Muitas vezes, mantenho uma timeline aberta, onde vou somando essas possíveis ligações afetivas, estéticas ou dissonantes que me ocorrem.

Um fato curioso é que as imagens de coisas caindo, que permeiam o vídeo, foram criadas inicialmente num workshop para uma reencenação da peça Balada do Deus Morto, de Flávio de Carvalho, por Livio Tragtenberg, em 2007, na Oficina Oswald de Andrade. Livio havia me convidado para dirigir as imagens em uma versão multimídia, e essas cenas foram produzidas na ocasião. Daí me ocorreu criar, para o vídeo, uma série de mensagens que cairiam de algum prédio, como se fossem mensagens enviadas de um ‘além’ (ou talvez casualmente vindas de alguém que as atirou de um prédio vizinho).

Esse vídeo dá continuidade a uma série de trabalhos que articulam sentido a partir de cenas desconexas, a partir de material ‘acumulado’. É um processo de criar relação em uma timeline, associando ideias e pensamentos de forma livre, porém com o intuito de transmitir certas inquietações, de ser um comentário íntimo, que possa ser compartilhado de forma aberta, assumindo novos significados para quem assiste.

Como comento no release do vídeo, o subtítulo ‘Pra não dizer que não fui ordinário’ é uma forma de acentuar referências múltiplas, de título de música (‘Pra não dizer que não falei das flores’, de Geraldo Vandré) a obras de videoarte de outros realizadores, bem como outros vídeos meus que possuem a palavra NÃO no título. Os vídeos de minha autoria seriam: Ali é um lugar que eu não conheço (1995), Eu não posso imaginar (1999), I have no words (1999) e Aqui de novo (2003). Este último é também um comentário sobre a linguagem de trabalhos anteriores.

Como é um vídeo produzido a partir de material ‘acumulado’, algumas cenas ganham sentido na medida em que são experimentadas ao lado da construção que vai se definindo na timeline.

Acredito que esse processo de construção de sentido narrativo possa ter sido parcialmente abandonado pelas novas gerações de artistas, que passaram a trabalhar com vídeo a partir de planos-sequencias ou situações mais conceituais. A cena que antecede o final do vídeo mostra um homem em cima de uma árvore (próximo a uma das entradas da USP), com uma corda amarrada em seu pescoço. Ele chora, está nitidamente desesperado e ameaça pular, enforcando-se. Há um grupo de pessoas embaixo da árvore, logo chegam policiais e um veículo do corpo de bombeiros. Um dos oficiais tenta dialogar com o homem. Eu passava pelo local e gravei a cena por acaso, de um ponto de vista que não podia ser visto, com todo o cuidado para que minha presença não influenciasse, em momento algum, a decisão do suicida. Pois tudo indicava que havia ali certa exposição voluntária, uma espetacularização espontânea, uma negociação entre um drama pessoal e o pacto que a sociedade nos conclama a fazer para viver coletivamente.

Vale lembrar que o trabalho se inicia com cenas de pessoas vistas por diversas janelas, vidas privadas que se expõem em suas singularidades, em meio a uma coletividade urbana bastante complexa. A inserção dessa cena teve por objetivo apontar uma perspectiva um tanto trágica que se observa nas multidões contemporâneas.

Essa cena tem certo peso no trabalho. Ela produz sentidos distintos para os diferentes públicos da obra. É um exercício de produção de sentido, de articulação entre as situações colocadas inicialmente pelo vídeo. É a deriva radial de um habitante da cidade. É um contorno, uma dissidência com relação ao pacto social, como a dizer: desisti! É uma morte possível, de alguém que se cansou dos embates e confrontos, aceitando a condição ordinária, triste e trágica da vida em uma cidade como São Paulo.

Utilizar cenas tão díspares e articular um discurso foi, em algum momento, o grande desafio para as narrativas do vídeo, que se negavam a seguir o caminho lógico dos curtas-metragens, em arremedo a um cinema ficcional. Era como dizer que poderíamos articular (no sentido de brincar, experimentar) com imagens da mesma forma como é típico da poesia articular palavras, frases e estruturas linguísticas. Talvez o tempo nos dirá o quanto tais linguagens se estabelecem temporariamente ou refletem determinados embates (sazonais talvez), entre meios, técnicas e modos de pensar e produzir imagens em movimento."

Lucas Bambozzi em depoimento à PLATAFORMA:VB (Março 2016)


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Dados técnicos

Desvios, Derivas, Contornos, 2007 | Vídeo, 6’40"
Lucas Bambozzi

Aqui de novo (2003) | Lucas Bambozzi

Eu não posso imaginar [I Have No Words] (2000) | Lucas Bambozzi

Otto (1998) | Cão Guimarães e Lucas Bambozzi

Ações VB
Acervo Videobrasil em Contexto #1
16º Festival
Outras conexões

"O vídeo cita uma série de referências na ficha técnica: por exemplo, o uso de vozes da minha filha me faz pensar em vídeos de Carlos Magno, que tinham uma participação direta do filho dele; os aviões cruzando o céu em Londres me lembraram, em algum momento, um vídeo do Wagner Morales gravado na Normandia. Mesmo que essas imagens já existissem antes de conhecer o trabalho ao qual me conecto (subjetivamente, na maioria das vezes), ao utilizá-las, é produzida uma associação, que fiz questão de comentar. Assim, continuando, o uso do preto e branco no tratamento da imagem em todo o trabalho pode remeter, para alguns, a uma opção de tratamento utilizada por Carlos Nader em vários trabalhos seus. Ainda que de forma já ‘destreinada’, o fato de estar tentando andar de skate pode sugerir uma associação com o artista australiano Shaun Gladwell, exímio skatista. Produzi cenas de coisas caindo do céu, e ao articular uma narrativa pontuada por essas cenas, imaginei que estava utilizando um dispositivo de amarração, tal como descrito por Cezar Migliorin. A abordagem íntima, triste e lírica pode ter algo que vi nos trabalhos de Guillermo Cifuentes ou nas obras de Patrick De Geetere, uma influência que sempre faço questão de retomar, assim como o faço a partir de certos vídeos de Eder Santos. Ou seja, o trabalho é todo um dispositivo de articulação e explicitação dessas referências, ao mesmo tempo que comenta: seriam meras associações estéticas? Até que ponto uma coisa influencia outra? Por que se assume tão pouco entre nós a influência de um artista sobre outro (digo, muitos citam artistas consagrados, que já não estão entre nós, mas poucos citam explicitamente um artista-colega, vivo, atuante)? E assim, sucessivamente, fui buscando pontos de contato. O uso do silêncio e da música de forma dramática pode ter algo a ver com alguns trabalhos de Arthur Omar. Há trechos musicais criados pelo grupo Feitoamãos (FAQ), do qual fiz parte. O uso de ruídos às vezes reconhecíveis, de máquinas que não aparecem na cena, pode ter sido inspirado pelo grupo O Grivo. Há trechos sampleados de Godspeed You Black Emperor, mas que constituem também um comentário sobre a forma como o grupo cria narrativas sonoras. São decisões que oscilam entre o inconsciente e a determinação (supostamente consciente). Ocorreu-me, então, tornar isso uma sugestão. É por aí que o vídeo se desenvolve. Os pequenos acidentes, como um leite que cai, foram suscitados por uma cena gravada para o filme Otto (1998), feito em parceria com Cao Guimarães. As cenas mais lentas, de situações que beiram o não-acontecimento, podem ter a ver tanto com este quanto com outros realizadores. Mesmo que nenhum desses realizadores tenha ‘inventado’ tais recursos, eles se tornaram detentores de certos padrões, que acabam constituindo certo estilo, sob o ponto de vista da crítica. Ao mesmo tempo, são referências próximas, ‘assumíveis’, em diálogo possível, mesmo que esse diálogo não ocorra da forma produtiva, como poderia ocorrer [em tempo: a PLATAFORMA:VB, para a qual foi solicitado este depoimento, pode cumprir bastante essa função de interconexão entre obras, autores e influências].”

 

Texto "Do invisível ao redor: o que se vê e o que não é aparente", de Lucas Bambozzi

No Acervo VB
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