Não há ninguém aqui #1

2000
Wagner Morales
publicado em 20.02.2016
última atualização 21.03.2016

“Não me recordo do início do processo, da ideia inicial. Sei que, desde o início do meu trabalho com o vídeo, uma das minhas pretensões era a de tentar construir narrativas que fossem descoladas do conceito tradicional de roteiro, de um texto escrito que descreve uma história a ser filmada. Isso era algo que eu já experimentara nos meus...


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“Não me recordo do início do processo, da ideia inicial. Sei que, desde o início do meu trabalho com o vídeo, uma das minhas pretensões era a de tentar construir narrativas que fossem descoladas do conceito tradicional de roteiro, de um texto escrito que descreve uma história a ser filmada. Isso era algo que eu já experimentara nos meus documentários anteriores, quer seja fazendo um filme sobre o mundo do boxe amador, no qual o final e o personagem principal iriam aparecer conforme o desenrolar de um campeonato de boxe amador (Na Lona, 2001) ou, ainda, como no meu primeiro documentário (Olhos Opacos, 1988), onde o roteiro das imagens a serem captadas era totalmente dependente dos depoimentos de um grupo de pessoas cegas a quem eu fazia basicamente apenas uma pergunta: ‘Você conseguiria me descrever algum de seus sonhos?’. Nesse filme, somente a partir do que era contado para a câmera seria possível saber que imagens gravar. Além desses documentários, também já havia feito dois vídeos mais experimentais (Ilusão Treda, 1998, e Bloombaalde, 1999) e uma primeira videoinstalação (Elliot, 2000). Esses primeiros trabalhos foram mostrados em pouquíssimas ocasiões e, na época, participaram de uma ou duas exposições coletivas, organizadas por um grupo de artistas do qual eu fazia parte, o Olho Seco, que algum tempo depois fundaria a galeria independente 10,20x3,60, um dos primeiros artist-run spaces de São Paulo. Portanto, NHNA #1 foi um baile de debutante, no sentido de ser um trabalho que fez o favor de me apresentar, enquanto artista visual, para um universo um pouco mais amplo. Até hoje, aspectos do processo de criação desse trabalho são presentes no que eu continuo fazendo: o trabalho solitário do começo ao fim, em todas as etapas de produção, a ausência de um roteiro, a matéria videográfica da imagem e a não-vontade de ser cinema, a possibilidade do fracasso, o uso de poucos planos.

Havia apenas um ponto de partida: um personagem fictício que deixa um anúncio nos classificadas sentimentais de um jornal e espera obter algum retorno. As imagens deveriam ser produzidas a partir dessas respostas. Vale lembrar que o vídeo foi realizado em uma época pré-celular e bem no começo da internet, quando ainda se usavam secretárias eletrônicas e vários serviços de armazenamento de mensagens vocais, alguns dos quais tinham por objetivo promover encontros amorosos entre os usuários. Assim, publicado o anúncio, não havia mais nada que garantisse a consecução do vídeo. Ao recusar o roteiro tradicional, optei por me colocar à escuta e me deixar guiar por uma base sonora, composta pelas gravações deixadas na secretária eletrônica. Não era possível saber se haveria respostas ou, se houvesse, se seriam interessantes ou suficientes para render algum plano, alguma imagem. Ou seja, o projeto já nasce com uma enorme possibilidade de fracasso e, olhando em retrospecto, isso talvez seja uma constante em quase todos os projetos que realizo. A boa surpresa foi que, a partir do anúncio de Pedro, o personagem fictício, surgiram centenas de gravações bem reais e que formavam uma espécie de retrato da solidão feminina em uma cidade grande. Depois, foi feita uma seleção dos áudios, e foram descobertos personagens. Entre eles, havia um mais recorrente, que foi dando a tônica desse roteiro sonoro. Com essa banda de som montada, o próximo passo foi encarnar a figura daquele personagem fictício, um alguém que deambula à noite pela cidade, querendo encontrar as donas daquelas vozes. Foi nesse momento que gravei as imagens em tomadas noturnas.

Na época em que criei este vídeo, minha referência maior era o cinema documental. Não tenho formação em artes, mas em antropologia. Então, muita coisa do universo das artes só fui descobrir depois. O que eu gostava mesmo era de cinema: Jean Rouch, Cassavetes, Hitchcock, Howard Hawks, Chaplin, Buster Keaton, filmes de terror. Também Ozualdo Candeias, Godard, Sganzerla, Pasolini. E literatura: Kerouac, Augusto dos Anjos, Edgar Allan Poe, Machado de Assis, Burroughs, John Fante, Dashiell Hammett, Albert Camus, James Joyce, Georges Bataille, Leminsky, essas coisas que a gente lê na adolescência e leva para o mundo adulto, às vezes para sempre, às vezes deixando pelo caminho. E claro, como bom aluno de Humanas, lia Marx, Claude Lévi-Strauss, Weber e Walter Benjamin. Acho que havia apenas três trabalhos em vídeo que eu já havia visto e adorava. Um era a videoinstalação Anthro-Socio de Bruce Nauman; os outros dois, de Gary Hill, se chamam Clover e Tall ships. Todos eles eu havia visto em São Paulo, na Bienal de 1998 (no caso de Nauman) e no MAM (no caso de Hill), em 1997. Aqueles trabalhos me deram uma sacudida e a vontade de começar a usar a câmera pra experimentar. Comprei então a minha primeira, uma mini-DV modelo VX1000, da Sony.

Esteticamente, este trabalho é de uma simplicidade atroz. Malfeito, câmera na mão enquanto dirigia um carro, áudio low-fi. Um material bruto que, mesmo após editado, continuava bruto, e é isso que me agrada nesse trabalho. É claro que há um refinamento na montagem do som, mas é esse lado um tanto cru e despretensioso do vídeo que mantém a sua força até hoje. Politicamente, creio que uma imagem que é feita de forma totalmente independente, sem a armadura dos roteiros, fora de esquemas de financiamento e captação de recursos via editais, patrocínios ou algo que o valha, é uma imagem resistente. Uma imagem que resiste. Não há nada mais político que uma imagem que resiste. E não falo de uma imagem da resistência, de imagens que tratam ou que mostram a resistência (de um povo, de um lugar, etc.), mas da imagem que, ela mesma, pelo modo como foi produzida e pelo simples fato de existir, é a própria resistência.”

Wagner Morales em depoimento para a Plataforma:VB (Fevereiro de 2016)


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Dados técnicos

Não há ninguém aqui #1, 2000 | Vídeo, 4’30”
Wagner Morales

Anthro/Socio (Rinde Facing Camera) (1991) | Bruce Nauman

Ações VB
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Outras conexões

Entrevista com Wagner Morales, FF>>Dossier, (Abr. 2004) [port]

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