Mitumba

2015
Keli-Safia Maksud
publicado em 01.10.2015
última atualização 19.10.2015

Julia Rebouças: Em seu projeto artístico, você se refere a circunstâncias históricas, relacionadas ao período colonial no Quênia, quando o clareamento foi associado à ideia de purificação e higiene, com vistas à criação de mercado para o sabão, além de todos os interesses de...


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Julia Rebouças: Em seu projeto artístico, você se refere a circunstâncias históricas, relacionadas ao período colonial no Quênia, quando o clareamento foi associado à ideia de purificação e higiene, com vistas à criação de mercado para o sabão, além de todos os interesses de submissão racial e social. Muitas empresas de cosméticos vendem hoje em dia produtos que supostamente clareiam a pele, e são muito populares em países do Caribe, África, América Latina e Oriente Médio. Gostaria de saber o que você pensa sobre esse fenômeno, considerando a sua pesquisa sobre o sabão que vem desde o início do século XIX?
Keli-Safia Maksud: Não se pode falar de sabão sem falar no comércio da higiene e do tipo de publicidade que tornou possível esse comércio. Quando o sabão foi introduzido pela primeira vez no mercado, no início do século XIX, era divulgado domesticamente (na Inglaterra) e internacionalmente (no Império Britânico) como um agente de purificação social. A publicidade vitoriana se fez explicitamente em torno da regeneração, da reinvenção e da salvação espiritual.  As típicas propagandas da época consistiam em imagens de crianças negras e brancas, macacos, roupas brancas, e espelhos, e a mensagem era que o sabão propiciava uma espécie de transformação metafórica mágica. Se você analisa algumas dessas propagandas, nota que as crianças negras magicamente ficam brancas depois do banho, e você encontra frases como “Usaremos Chlorinol e ficaremos como os negros embranquecidos” – basta fazer uma rápida pesquisa no Google, que você encontra essas propagandas vitorianas, ou de sabão Pears, e vai entender do que estou falando. Essas imagens de limpeza, aparência e beleza, eram usadas para definir a hierarquia e a diferença social, para que o Império Britânico pudesse legitimar sua posição colonial dentro do próprio reino, através dessa ideia de purificação social.

Quando avançamos para a propaganda contemporânea, vemos que isso não mudou muito, exceto pelo fato de que as imagens abertamente racistas foram retiradas. No entanto, a mensagem ainda é a mesma - a pele branca é superior. Ainda existem produtos em muitas regiões da África, como Fair and Lovely, Pears e Nivea, que são vendidos desde o século XIX e continuam a dominar o mercado africano valendo-se de uma mensagem mais nuançada de purificação. Ainda mais impressionantes são esses preparados caseiros aplicados ao rosto para clarear a pele. Essa mistura caseira – mkorogo em suaíle – é feita misturando todo tipo de produtos como alvejantes, relaxantes capilares, cremes etc. e depois de usada, a pele fica tão macia que arde se você se expõe à luz do sol!

No entanto, esse ideal de beleza não se limita ao sul global, mas faz parte, na verdade, do sistema da superioridade branca que nos afeta a todos. Na América do Norte, por exemplo, você vê essa divisão entre negros de pele clara e negros de pele escura, segundo a qual os negros de pele clara têm mais poder dentro da estrutura social existente. Anne McClintock descreve perfeitamente isso em seu livro Imperial Leather, onde ela diz (estou parafraseando) que a propaganda vitoriana de sabão permitiu a comercialização e a distribuição do racismo, em uma escala inimaginável, para uma massa enorme e heterogênea de pessoas [* Anne McClintock, Imperial Leather: Race, Gender and Sexuality in the Colonial Context", p. 209. Nova York, Londres: Routledge, 1995. O título do livro, literalmente, "couro imperial", é o nome de uma marca de sabão muito popular na Inglaterra desde o século XIX.]. Para mim, isso é algo que continua caracterizando a leitura e a compreensão do sul global, assim como dos negros norte-americanos e, subsequentemente, o modo como essas regiões vêem a si mesmas e seus ideais de beleza.


JR: A diáspora é uma questão importante para a história dos países coloniais e pós-coloniais. Ainda hoje, vemos movimentos migratórios contemporâneos diferentes, porém ainda relevantes. Você é uma artista que vive entre o Quênia e outros países; de que maneira esses temas chegam até você e qual sua opinião acerca deles?

KSM: A questão da migração e da diáspora é algo que vivi muito antes de me mudar para fora de meu país. Cresci no Quênia, mas minha família é da Tanzânia. Eu passava a maior parte do tempo no Quênia, mas passava todos os feriados no Tanzânia. No Quênia, eu era considerada tanzaniana, e na Tanzânia nos consideravam quenianos, por motivos pequenos, como a maneira como falávamos suaíli ou o fato de que somos fluentes em inglês. O Quênia e a Tanzânia têm histórias pós-coloniais diferentes, pois o primeiro adotou uma postura pró-Ocidente e o segundo, uma filosofia baseada no socialismo na qual o suaíli era a língua nacional. Havia muitos tanzanianos no Quênia durante minha infância, então eu diria que nós crescemos numa espécie de diáspora na qual a maioria dos amigos de meus pais era tanzaniana. No Quênia, estudei numa escola que adotava um sistema de ensino britânico, onde a maioria dos professores era britânica e falávamos inglês a maior parte do tempo, mas quando íamos à Tanzânia, a língua era o suaíli. No Quênia havia muitas pessoas de outros países da região, como Somália, Etiópia, Ruanda e Uganda, então de certa forma havia várias diásporas operando ao mesmo tempo. Por isso, eu sinto que estava sempre transitando entre diferentes culturas, tribos, línguas e religiões e o que eu mais tarde viria a compreender como Diásporas. 

Quando me mudei para o Canadá, aconteceram duas coisas ao mesmo tempo: a primeira foi um processo de imediatamente me tornar algo diferente – negra. De repente, eu fazia parte dessa coisa chamada diáspora negra, o que, para mim, negava as diferenças de nuance entre as pessoas negras, nivelando tudo num pacote só. Ao mesmo tempo em que isso acontecia numa espécie de nível macro, também havia uma expectativa de que eu conhecesse uma cultura ‘africana’ autêntica e produzisse trabalhos que se enquadrassem facilmente nesta projeção, ainda que a ideia de uma identidade fixa pertencente a uma cultura autêntica fosse um tanto alheia à minha experiência. Foi então que comecei a questionar essas ideias de autenticidade e identidade. 

O fato de viver em outro país me proporciona a distância para pensar criticamente o Quênia, e principalmente a Tanzânia, com relação aos efeitos do colonialismo e do pós-colonialismo nessas regiões. Durante minha infância no Quênia, o colonialismo não fazia parte de qualquer memória coletiva ou conversa, no entanto ele teve um forte impacto na identidade nacional. Por exemplo, analisando o sistema educacional do Quênia, nós só estudávamos história europeia, só líamos livros europeus, só aprendíamos sobre artistas europeus – o sistema é organizado de tal modo que é mais importante aprender sobre a Europa. Isto não acontece necessariamente em regiões como a África Ocidental – mas acho que eu não teria enxergado isso tão claramente se nunca tivesse deixado o país.


JR: Em uma conversa anterior, você mencionou como a tradição têxtil na África, cujo maior símbolo são os tecidos estampados, era intimamente associada a interesses comerciais britânicos e holandeses, que exportavam tecidos para as colônias. Gostaria que você explicasse como o seu trabalho artístico leva essa discussão da identidade, da construção da tradição e da memória, até a pesquisa do “estampado africano”.

KSM: Os tecidos que usei nesse trabalho são conhecidos como estampado africano ou holandês, African wax print fabrics ou Dutch wax. Desde o final do século XIX, esses tecidos são produzidos na Europa para serem vendidos na África. Esses estampados têm origem na Indonésia (nos batiks javaneses) e são produzidos industrialmente na Holanda e em Manchester para serem exportados para a África. Em meados dos anos 1960, tornaram-se tão populares em todo o continente que passaram a ser usados pelos nativos como signos de uma identidade africana independente, livre do domínio colonial. Hoje em dia, são essencialmente (e globalmente) percebidos como uma expressão de autenticidade africana. Aqui, o paradoxo é que justamente esse tecido que simboliza a conexão de uma herança africana também signifique uma separação da cultura histórica daquela terra natal. Ele é resultado desse complexo processo de globalização que criou uma imagem construída de "africanidade". É fundamental observar que esses tecidos "holandeses" são uma referência de identidade africana genérica, negando a ideia de identidade associada a territórios ou tribos. O que me interessa nisso é que esses tecidos são deslocados de um lugar para outro, e adquirem significados e identidades diferentes. Em diferentes regiões da África, eles podem ser vistos como um meio de comunicação, onde determinados padrões ou cores designam determinadas coisas localmente. No Ocidente e nas Diásporas, eles são usados como signos de orgulho afro.

Nos últimos anos, tem havido um tipo diferente de comércio entre a América do Norte, a Europa e a África, na forma de roupas de segunda mão, conhecido como mitumba. Essas roupas são enviadas em grandes fardos amarrados dentro de contâineres de carga e, a princípio, foram destinadas à venda para os mais pobres, embora hoje todo mundo compre essas roupas. 
Um dos maiores portos de mitumba fica na Tanzânia. De lá, as roupas são distribuídas por todo o interior da África. O transporte e a venda de mitumba é responsável por muitos empregos, tanto nas ricas empresas de doações quanto nos países africanos onde a mitumba é comprada e vendida. Os adversários da mitumba observam que o influxo dessas roupas baratas é responsável pelo declínio da indústria têxtil local. Os defensores da mitumba destacam que essas roupas são benéficas, pois estimulam a atividade econômica e permitem que as pessoas com recursos limitados usem roupas da moda. Em cidades como Nairobi, dificilmente você encontra alguém com roupas tradicionais. 

Este trabalho visa essas trocas econômicas e culturais entre África, Europa e América especificamente através da lente da roupa e seu impacto sobre a identidade. A questão da propriedade e do controle é muito fascinante especialmente quando me pergunto: quem controla essas redes comerciais? A maior empresa que produz tecidos estampados africanos é a Vlisco, que fica na Holanda. Se você pesquisar na página da companhia, verá que eles usam apenas modelos africanas e contam uma história romântica sobre a origem da empresa e dos padrões estampados. Os tecidos que usei nesse trabalho foram comprados da Vlisco e eu quase não acreditei ao descobrir como são caros. 

Para mim, sempre existe um descompasso entre as representações da África e a África que eu conheço. Passei muito tempo pesquisando as origens e o modo como essas percepções foram construídas, mas é uma tarefa impossível. De modo que nessa instalação, através do uso do alvejamento, simbolicamente um ato descolonizador, esse trabalho tenta voltar para uma origem impossível de ser alcançada - os tecidos provavelmente nunca ficarão brancos, mas se transformarão em alguma outra coisa, e o mesmo pode se dizer sobre a identidade.


Keli-Safia Maksud em entrevista à curadora Júlia Rebouças, que integra a Comissão Curatorial do 19º Festival  (julho 2015) 


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Dados técnicos

Mitumba, 2015 | Instalação
Keli-Safia Maksud

Ações VB
19º Festival
Anexos

Esboços e referências para desenvolvimento da obra 

The fabric of Africanity. Tracing the global threads of authenticity (2007), de Nina Sylvanus, foi uma referência conceitual para a artista. [eng]

Monuments, memorial, and the politics of memory (2003), de Katharyne Mitchell, foi uma referência conceitual para a artista. [eng]

Of Mimicry and Man: The Ambivalence of Colonial Discourse (1984), de Homi Bhabha, foi uma referência conceitual para a artista. [eng]

On the Emergence of Memory in Historical Discourse (2000), de Kerwin Lee Klein, foi uma referência conceitual para a artista. [eng]

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