Bitu Cassundé: Atrás de cada coluna modernista há um “Saci-Pererê” escondido, cidade-paisagem-brasileira, mandioca, habitantes das árvores, andarilhos, política, delírio, sexo, cosmologia indígena, amalgama rural/urbano, um mestiço, uma assombração. Superquadra-saci atravessa diferentes camadas de...
Bitu Cassundé: Atrás de cada coluna modernista há um “Saci-Pererê” escondido, cidade-paisagem-brasileira, mandioca, habitantes das árvores, andarilhos, política, delírio, sexo, cosmologia indígena, amalgama rural/urbano, um mestiço, uma assombração. Superquadra-saci atravessa diferentes camadas de enfrentamentos ficcionais, exercícios para uma política da liberdade e reconstruções utópicas. Como se compõem essas distintas arquiteturas?
Cristiano Lenhardt: Tento me conectar a todo momento com a ideia que originou o projeto. É difícil essa tarefa, porque é tecido de sonho e escapa o tempo todo, não é matéria. Me apaziguo lembrando do que seria uma outra sociedade e vejo com humor esta que compartilhamos. Meu trabalho existe na construção de coisas que gostaria de ter visto. Cada vez mais me certifico que a pobreza é nosso bem maior. Não é confortável, mas gosto de ter uma goteira no meu quarto, dos vizinhos não respeitarem horário de silêncio, ou nem saberem que isso existe. O selvagem sou eu e o monstruoso também, pois quantos sustos ainda tenho que levar com minhas violências? Se Deus sou eu, volto a respirar e viver como um qualquer. Por isso, gritos agudos de pássaros saem da garganta humana, rompendo protocolo.
BC: Se seu trabalho é impulsionado pelo desejo de ver coisas que gostaria de ter visto, como se materializa imageticamente o mestiço e a assombração de Superquadra-saci? E qual ambiência habitam esses personagens?
CL: Eles se materializam por meio de pessoas com personalidades fortes e com uma visualidade alterável que chamo para atuar. A ambiência é a margem: beiras de estrada, praças abandonadas, árvores e dimensões paralelas.
BC: Em sua obra os gritos desestabilizam o ambiente, reafirmam um território, são um regozijo latente que preenche e reafirma uma condição. Quem grita, grita algo ou alguma coisa, o quê?
CL: No filme, quem grita fere, grita um grito matérico, chama por liberdade ou canta por amor, gozo. Grito de pássaro. Chamei a Tetê Espindola para fazer esses gritos, ela tem uma voz linda que atinge uns agudos incomuns. Estou trabalhando com a ideia de uma voz divina, uma voz que cria e também destrói.
BC: Há uma dualidade latente no título do filme: "superquadra" é uma estrutura de organização urbanística, que segue uma lógica; enquanto "saci" vem de uma construção mitológica do século XVIII, que segue uma ideia de delírio. Além disso, essa mitologia transita entre as culturas indígenas (termo "Saci" vem do tupi), africana (cachimbo), europeia (gorro - fonte de seus poderes mágicos). Podemos, assim, entrecruzar América, África e Europa. O Videobrasil discute em suas plataformas curatoriais o sul geopolítico, seus novos redesenhos, rearranjos. Gostaria que você articulasse essas camadas. Como a realidade desagua e contamina o “fantástico” em seu filme?
CL: Superquadra-Saci é a ideia de algo que foi feito com todo o pensar, o melhor de uma época; mas seus habitantes ou usuários, ou a dinâmica que esses agentes promovem por suas personalidades e culturas, a tornam capenga, diferente do ideal. Esta realidade é, por sua condição mais livre, sem barreiras com o sobrenatural, com o monstruoso, com o diferente. Existe uma coexistência de mundos, e eles se visitam. Esta realidade outra me parece mais justa por sua organicidade e sua forma de definir o que é natural.
BC: Quanto à estruturação dos personagens, gostaria que você me falasse sobre eles.
CL: O que povoa minha mente entra em contato com o que o ator me sugere por sua imagem e fisicalidade em combinação com o ambiente escolhido e suas peculiaridades. Os “Guaracys” e os “Jussaras” são dois grupos que possuem um sistema próprio, marginais e clandestinos, respectivamente, e a interação entre eles não é muito amigável, mas pode ser rica.
BC: Seu trabalho é também bastante lapidado na manufatura e atinge uma potencialidade máxima a partir de efeitos e manipulações regidos com propriedade. Você sempre diz: “tudo pode mudar no processo de finalização, nada é certeza, tudo que agora é, pode já não ser”. Como você lida com esses dois vetores inversamente proporcionais, a racionalidade e estruturação do cronograma versus a liberdade poética?
CL: Eu faço o stoyboard completo um dia antes da filmagem de cada cena e não tenho um roteiro, tenho uma historia que vou contando para todos que perguntam sobre o filme, e cada vez ela vai crescendo ou mudando.
Cristiano Lenhardt em entrevista ao curador Bitu Cassundé, membro da Comissão Curatorial do 19º Festival (julho 2015)
- Dados técnicos
Superquadra-Saci, 2015 | Vídeo
Cristiano Lenhardt
O Saci (1951) | Rodolfo Nanni
Somos Todos Sacys (2005) | Rudá K. Andrade e Sylvio do Amaral Rocha
- Ações VB
- 19º Festival
- Anexos
Relato do curador Bitu Cassundé sobre a experiência de acompanhar o desenvolvimento do projeto do artista Cristiano Lenhardt (jul. 2015) [pt]
SUPERQUADRA: pensamento e prática urbanística, por Marília Pacheco Machado (Dissertação, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília, 2007). [pt]