Wallpaper – Tangier

2001
Yto Barrada
publicado em 03.10.2015
última atualização 06.10.2015

João Laia: Em 2003, você foi uma das fundadoras da Cinéma Rif – Cinemateca de Tânger. Como seu trabalho na cinemateca se relaciona com sua prática artística? Você considera sua atividade na cinemateca parte da mesma linha de trabalho de sua prática como artista ou, para você, ela é uma área de atividade...


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João Laia: Em 2003, você foi uma das fundadoras da Cinéma Rif – Cinemateca de Tânger. Como seu trabalho na cinemateca se relaciona com sua prática artística? Você considera sua atividade na cinemateca parte da mesma linha de trabalho de sua prática como artista ou, para você, ela é uma área de atividade separada?
Yto Barrada: O projeto da Cinemateca começou quando um grupo de artistas, do qual faço parte, formou uma organização sem fins lucrativos para assumir o aluguel do Cinéma Rif 1938, na praça central de Tânger. O cinema ia fechar, só passava filmes velhos e arranhados de Bollywood, para rapazes que geralmente usavam a sala escura para finalidades outras que assistir aos filmes. Achamos que seria uma boa ideia trazer de volta o cinema marroquino e mundial para o público local. Ficamos dois anos levantando recursos e mais dois anos em construção; a cinemateca finalmente abriu, há dez anos, e foi o primeiro cinema com centro cultural do Norte da África. Sonhávamos com uma programação ambiciosa, permanente, de filmes de arte; com uma série de oficinas e palestras, que reuniriam artistas reconhecidos internacionalmente com públicos infantis, grupos de mulheres, estudantes de cinema e organizações sem fins lucrativos. No cerne de qualquer cinemateca, existe um arquivo de filmes, e a CdT já exibiu seleções de seu arquivo de documentários, cinema árabe e filmes relacionados, tanto do Marrocos quanto do resto do mundo. O que não prevíamos era que nosso café seria dominado pela juventude local, que parece passar todo o tempo livre por lá – paquerando, tocando violão e cantando, usando a internet gratuita, bebericando uma Coca‑Cola, flertando com gente da equipe e, muito de vez em quando, assistindo a algum filme. Todo mundo diz que hoje em dia o cinema precisa ser um passeio completo! No começo, as duas atividades pareciam disputar, até a exaustão, toda a minha energia e o meu tempo. Eram dois empregos em período integral; eu tinha toneladas de assuntos gerenciais e administrativos para administrar, tinha que captar recursos, enfim, foi realmente um exagero. A experiência me ensinou muito, contudo; nos últimos dois anos, me dei conta de que a CdT faz parte do meu trabalho. Ela é uma espécie de intervenção site‑specific, que exige de mim um novo tipo de criatividade. Ao mesmo tempo, o que acontece no cinema e em torno dele alimenta meu trabalho. O mundo da arte tem apoiado muito a CdT, entendendo que ela não é apenas um mero cinema. De modo que, agora, meus dois empregos mais ou menos se complementam. Sou de uma geração de artistas do mundo árabe para quem “estar em casa ou longe de casa” faz toda a diferença. É um laboratório muito estimulante. Há três anos, contratamos uma fantástica nova diretora, Malika Chaghal. Ela lançou programas educativos muito interessantes, em parceria com escolas e também fábricas locais.


JL: A ideia de trânsito ou de tráfico parece ser muito importante em sua prática artística; pode‑se percebê‑la tanto no tema da circulação das imagens quanto nos diferentes tipos de movimentos populacionais presentes nela. Essa ideia se associa, portanto, à circulação, mas também à imobilidade. Isso constitui um paradoxo interessante em relação a seu trabalho. Refiro‑me, por exemplo, a seu interesse em Tânger, como espaço tanto de entrada quanto de saída, mas também como ponto final. Para os turistas, a cidade é uma via de acesso facilitada ao “exótico”; já, para os africanos que tentam entrar na Europa, é um local de espera. Ao mesmo tempo, Tânger é também um espaço em movimento em função da pressão das forças econômicas imobiliárias que entraram em recessão na crise atual. E, por fim, podemos considerar esse conceito de trânsito/tráfico também à luz da dinâmica econômica, trazendo e levando imagens e objetos de Tânger e do Marrocos. Elementos como a palmeira ecoam bem esse tipo de dinâmica paradoxal. Você poderia comentar essas ideias e discorrer sobre seu interesse pelo conceito de trânsito/ tráfico como movimento e como espera, em suas análises da cidade de Tânger?
YB: Hércules, enviado em uma missão ao fim do mundo, separou a Europa da África – criando o Estreito de Gibraltar – para negociar uma saída do Mediterrâneo. Durante décadas, a costa da região de Tânger foi o ponto de embarque de um próspero comércio legal e ilegal de mercadorias e pessoas através do Estreito. A filósofa Nadia Tazi disse, numa entrevista, que o Estreito “é visto não tanto como um lugar, mas como um estado do ser”. O fechamento da fronteira da Comunidade Europeia aos marroquinos coincidiu com a chegada das antenas parabólicas e dos DVDs a Tânger; assim, todo mundo ficou com essa visão cor‑de‑rosa de um paraíso europeu proibido para eles. Por algum tempo, Tânger foi uma grande sala de espera existencial. Milhares de pessoas morreram tentando atravessar o Estreito. Hoje há um grande incentivo para desenvolver o Norte do país, e a especulação imobiliária está mandando em tudo, numa espécie de transformação em câmera acelerada de Tânger. Por ironia, a cidade acabou isolada como um local de muito trânsito. Trazer o mundo até Tânger, uma vez que as fronteiras se fecharam para os norte‑africanos, foi o que inspirou a Cinemateca de Tânger. Traficamos cultura, exibindo, divulgando, criando, importando e exportando imagens em movimento. Então, à nossa maneira, contribuímos para essa história complexa de tráfico/trânsito.


JL: Embora intensamente dedicado à cidade de Tânger, seu trabalho possui um apelo universal, por abordar questões similares às enfrentadas diariamente em muitas partes do mundo. Você opera com uma precisão impressionante a dinâmica entre global e local, enfrentada no mundo globalizado de hoje. Gostaria que você comentasse o uso da palmeira como ícone de identidade local e global em seu trabalho. Em Portugal, de onde venho, com uma intensidade diferente, se comparada à do Marrocos, a palmeira é usada como um signo do Sul para o consumo norte‑europeu; mas outros lugares mais inesperados também usam essa árvore. Refiro‑me especialmente a cidades como Hyères, também conhecida como Hyères‑les‑Palmiers, no sul da França, que também usa a palmeira como parte da criação de uma imagem/identidade do lugar. Você poderia comentar sobre seu interesse pela palmeira e explicar como ela se tornou, para você, uma ferramenta para revelar dinâmicas econômicas e políticas de um local, e nos dar outros exemplos de imagens e objetos similares? 
YB: As palmeiras são uma alegoria tropical, um símbolo do Sul (você pode encontrá‑las em Paris, na Gare de Lyon, de onde partem os trens para o Sul; em Las Vegas, onde evocam oásis; em restaurantes, onde sugerem dançarinas com saias de folhas) e um símbolo do imperialismo colonial. As palmeiras da principal rua de Tânger, a Avenue d’Espagne, foram um presente do ditador espanhol Franco. Tânger é a cidade mais setentrional do Marrocos, e as palmeiras são originalmente meridionais. De modo que as palmeiras transplantadas são símbolos do poder centralizado de nossos administradores: primeiro, os colonizadores, espanhóis e franceses, e, depois da independência, os governos, tecnocratas, ministros, agências governamentais, a indústria… (Até recentemente, a agência governamental encarregada do desenvolvimento econômico e infraestrutural do Norte tinha sede na capital da região Sul. Só recentemente eles se mudaram para Tânger.) Agora, cada administração nova planta sua imensa ilha de palmeiras e postes de iluminação numa avenida em Tânger, onde constroem também uma dúzia de rotatórias com canteiros de gerânios. Sabemos de inúmeras histórias de palmeiras que são transportadas de uma cidade para outra, antes de visitas oficiais, para decorar avenidas. Essa absurda dança do poder (e do desperdício) numa cidade potemkiniana foi tema de um livro e de um filme que fiz, A Guide to Trees for Governors and Gardeners [Guia de árvores para governos e jardineiros], e do meu diorama de mesa motorizado, Gran Royal Turismo (2003). Em um filme chamado Beau Geste [Literalmente, “belo gesto”, é também o apelido do personagem do romance homônimo do inglês P.C. Wren (1924), adaptado para o cinema em 1939, com Gary Cooper no papel de Michael “Beau” Geste, que se alia à Legião Estrangeira na África francesa. (N.T.)], fiz um gesto vão para tentar salvar uma palmeira‑das‑canárias (Phoenix canariensis); o dono fizera um talho fatal em seu tronco de propósito, no intuito de matá‑ ‑la, para que a prefeitura tivesse que levá‑la embora do canteiro de obras que ele iria instalar ali. Também fiz esculturas de palmeiras cheias de lâmpadas, que pareciam luminosos de cinema, parques de diversão ou motéis.


JL: O Videobrasil foca no chamado Sul global como um local privilegiado de ação e reflexão. O Sul global é considerado um território geopolítico, que não corresponde à área geográfica ao sul do Equador, mas, antes, a um mapeamento de uma área simbólica, onde os impactos das dinâmicas entre passado e futuro associadas à globalização podem ser vistos a partir de um ponto de vista privilegiado em relação às narrativas predominantes que se originam no Norte e no Ocidente. Como leria seu trabalho, nessa perspectiva de um Sul global?
YB: Na verdade, o que estou tentando trazer à tona, descobrindo e aprendendo a ler são as estratégias de resistência, as “transcrições ocultas”, das pessoas que enfrentam um poder superior [Alusão ao subtítulo do livro do cientista político e antropólogo norte‑americano James C. Scott, Domination and the Arts of Resistance: Hidden Transcripts (1990). Segundo Scott, em público, os oprimidos aceitam a dominação, mas, nos bastidores, sempre a questionam; quando esse questionamento se torna público, os oprimidos assumem o próprio discurso e se tornam conscientes de sua condição comum. A transcrição oculta é um discurso livre que ocorre longe dos olhos do detentor do poder. (N.T.)]. A senhora em meu filme The Smuggler [Contrabandista], minha avó analfabeta, com suas agendas telefônicas codificadas, as crianças analfabetas que decifram o itinerário identificado nas placas dos ônibus para poder fugir para a Europa, são todos personagens da Tânger que conheço. Assim como os vendedores ilegais de cigarros, os passageiros clandestinos e aspirantes a emigrantes de uma dezena de países mais ao sul (a quem o estado marroquino oferece uma amostra do tipo de recepção que terão, se um dia conseguirem chegar à Europa).


Entrevista concedida por e‑mail a João Laia em ocasião do 19º Festival (julho 2015)


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Dados técnicos

Wallpaper – Tangier, 2001 | fotografia
Yto Barrada
 

Yto Barrada on the ways the Strait of Gibraltar shapes life in Tangier (2012) | San Francisco Museum of Modern Art

Artista discute a complexa realidade da vida em Tangier, cidade na costa norte do Marrocos, no Estreito de Gibraltar. [eng]

Ações VB
19º Festival
Outras conexões

Site da artista


Yto Barrada engana-nos com a arte popular de Marrocos, por Sérgio C. Andrade (Jornal Público, jun. 2015). [pt]


A Tangier-based photographer and video artist who charts the struggles going on behind the scenes in tourist mecca Morocco, por Skye Sherwin (The Guardian, dez. 2011). [eng]


Artist Project / A Life Full of Holes. Yto Barrada. (Cabinet Magazine, 2004/05). [eng]


Talking Pictures. Yto Barrada é entrevistada por Jennifer Higgie. (Frieze Magazine, out. 2011). [eng]


Yto Barrada at Fotomuseum Winterthur, por Olga Stefan. (Art in America Magazine, mar. 2013). [eng]

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