Júlia Rebouças: Como você definiria seu trabalho? Como o apresentaria para alguém que não conhece sua produção?
Sônia Gomes: É difícil falar do meu trabalho, mas eu devolveria com uma pergunta. O que meu trabalho fala pra você? Eu estava outro dia com um rapaz, que me ajudava na produção das obras da Bienal...
Júlia Rebouças: Como você definiria seu trabalho? Como o apresentaria para alguém que não conhece sua produção?
Sônia Gomes: É difícil falar do meu trabalho, mas eu devolveria com uma pergunta. O que meu trabalho fala pra você? Eu estava outro dia com um rapaz, que me ajudava na produção das obras da Bienal de Veneza [Sônia Gomes é a única artista brasileira convidada para integrar a mostra curada por Okwui Enwezor, All the World’s Futures, 2015], e ele me perguntou sobre o conceito do meu trabalho. Eu pedi pra ele observar, “escutar” a obra, e, então, ele mesmo me dizer do que se trata a obra. Ele me disse coisas que eu não podia imaginar, que não vinham de mim, mas que, sem dúvida, estavam ali. Essa seria minha resposta em relação a essa expectativa quanto ao conceito da minha obra. Mas eu também poderia apresentá‑la falando do material, do tecido e de como eles sempre chegam até mim. As pessoas deixam as coisas aqui no ateliê, elas me presenteiam, doam, os objetos chegam aqui, de uma forma ou de outra, sem muito planejamento de minha parte. É como se eu tivesse uma responsabilidade muito grande; sinto isso em relação a essas coisas. Eu sinto que elas chegam com um apelo. Tudo o que vem tem a história de quem doou, até porque essa pessoa não descartou, não foi pro lixo. Ela trouxe pra mim. Ela está preocupada com aquela história que está dentro do objeto que ela trouxe pra mim. Um dia, chegaram aqui no ateliê algumas gaiolas. Eu pensei: o que fazer com elas, se eu trabalho com tecidos? Eu as deixei penduradas aqui, e disso saíram trabalhos, um dia, com panos e gaiolas. Então, eu começo assim, procurando escutar o material. O que ele tem a dizer. De uma forma geral, posso dizer que trabalho com tecidos, retalhos, pedaços de coisas, coisas de vestir tanto a casa quanto o corpo. Minha ação começa a partir dessas peças que me chegam, da história que vem na memória do material; então, eu vou cortar, cerzir, torcer, juntar pedaços, texturas, cores, preencher, dobrar… Comecei a partir da minha roupa. Eu não costuro, não sei costurar da maneira clássica. Comecei transformando minhas próprias roupas. Às vezes, queria fazer uma barra e, quando via, eu já tinha transformado em outra coisa. Sempre busquei um inconformismo das coisas que estão estabelecidas, sempre quis dar um toque diferente naquilo. Meu trabalho surgiu dessa artesania.
JR: Você nasceu e cresceu em Caetanópolis, cidade de Minas Gerais onde está situada uma das mais antigas fábricas de tecidos da América Latina, a Companhia de Fiação e Tecidos Cedro e Cachoeira, de 1872. Há pouco, você falou sobre memória, sobre essas peças que vestem a casa e o corpo. Penso, então, numa esfera de intimidade que está presente em sua produção. Como essa referência da sua história pessoal, da sua intimidade, informa sua obra?
SG: Não sei se isso é uma resposta. Meu trabalho surgiu da solidão. Sempre fui muito só, desde criança. É tudo muito pra mim. Isso hoje pode até soar como egoísmo, como uma atitude muito fechada. Se não ligavam pra mim, e eu fui uma criança muito solitária, então eu tinha que me nutrir de alguma maneira. Hoje, com meu trabalho, sinto que estou tirando de dentro de mim as coisas que me ajudam, que alimentei ao longo de minha vida. É difícil explicar!
Fui registrada em Paraopeba, mas sou de Caetanópolis, e de lá são todas as minhas referências. A cidade nasceu com uma fábrica de tecidos. Essa conexão com tecido tem a ver com a cultura da cidade, mas também tem a ver com minha própria maneira de me relacionar com as coisas. Na casa de meu pai, chegavam amostras de retalhos, eu gostava de observá‑las, elas eram um estímulo pra mim. E, ali, eu já começava torcendo, amarrando, mexendo com as cores. Minha história é essa união entre o popular e o erudito. O popular veio da minha avó, mãe da minha mãe, que me criou até os cinco anos. Ela era uma mulher muito simples, mas muito sábia, era benzedeira, parteira. Era uma figura forte. Depois que eu fui pra casa da família do meu pai, ainda menina, entrei em contato com um ambiente que era mais erudito mesmo. Havia uma grande biblioteca na casa e, de uma forma ou de outra, tive contato com uma cultura europeia. Meu pai era filho de inglês com portuguesa. Mas a casinha da minha avó nunca se perdeu em mim. Ela morava num lugar simples, sem piso. Quando fui morar com meu pai, numa casa com piso, eu até não gostava. Tentei fugir várias vezes. A minha verdade estava no simples. Era lá, pelo menos, que estava o afeto. Essa união de universos é uma coisa bem brasileira, não?
JR: Você trabalhou muito tempo, produzindo, mas sem se considerar artista, sem chamar o que você fazia de arte. O que mudou, quando essa consciência chegou?
SG: Chegaram, principalmente, as referências. Um dia, um jornalista, numa matéria, disse que eu era “o Bispo de saias”. Então, fui pesquisar e descobri o Arthur Bispo do Rosário. Eu achei o trabalho dele maravilhoso e é claro que fiquei lisonjeada. Mas demorei a saber que ele existia! Sempre trabalhei a partir de mim; eu fazia por necessidade. Em termos de técnica, do fazer, minha maior referência talvez tenha sido o artesanato, embora eu nunca tenha me identificado muito com as coisas que via. E também havia todo o grupo de referências da minha avó materna: as rodilhas, os patuás, as trouxas. Na casa do meu pai, havia bordados da Ilha da Madeira, richelieu, essas coisas todas. Eu adorava, achava aquilo muito bonito. Aí, descobri que a mistura é mais bonita ainda. O material mais simples e o mais sofisticado. Os bordados no linho, o linho e a chita. As estampas da chita, os desenhos. As sedas bordadas com o cru. Eu me lembro também da minha avó usando rodilha pra carregar peso, carga, lata d’água na cabeça; carregando trouxas de roupas. Quando comecei a dar esses nomes às minhas obras, eu já era artista [Rodilha, Trouxa, Patuá são nomes de séries de obras de Sônia Gomes, assim como Torções e Ninhos, entre outros]. Fiz isso com consciência, estava ligando um momento a outro. A arte já estava me chamando há muito tempo, e eu não sabia o que era. Eu achava que ser artista era muito pra mim, parecia até ostentação. Eu me sentia artesã. Mas meu trabalho também não cabia lá, eles achavam que era mal‑acabado, que não tinha função. Fiz umas bijuterias, por um tempo, mas ninguém tinha coragem de usar. Achavam muito ousadas. Nenhuma loja recebeu. Faltava coragem nas pessoas para usarem e entenderem aquilo. E eu queria extrapolar cada vez mais. Não me intimidava pelas recusas. Ninguém entendia e ninguém usava, mas eu usava e continuava produzindo.
JR: No 19º Festival, há muitos artistas falando sobre memória, usando sua história individual, subjetiva, para tentar reescrever as narrativas mais hegemônicas. De alguma forma, seu trabalho também faz isso, você concorda?
SG: A história da gente vem da história dos outros. Ninguém tem uma história individual, subjetiva, que não esteja conectada com o outro. Meu trabalho tem histórias minhas, mas as pessoas encontram a história delas lá. Todo artista fala disso, eu acho, de memória, tempo. São questões recorrentes e que não estão só no meu trabalho. Como falei, minha busca foi sempre muito solitária. Não acho que ninguém tenha se preocupado comigo. Minha profissão foi uma busca minha. Quis sobreviver para me tornar uma mulher independente, autônoma, eu quis ter um lugar pra mim, viver do meu trabalho. Não tenho ninguém, então, eu sempre quis ter alguma segurança. Hoje, pelos acontecimentos todos, acho que sou uma artista internacional, o que até me assusta. Não projetei isso; sempre quis era dar conta de mim.
JR: Quais as ressonâncias da ideia de Sul geopolítico no seu trabalho?
SG: Recentemente fui à África do Sul, mas senti que não fui à África. Preciso voltar, ficar mais tempo, pesquisar mais, viver um pouco. Dessa primeira vez, isso aconteceu talvez porque eu tenha ficado num ambiente que era muito parecido com qualquer lugar rico. Depois, porque não consegui perceber a história do lugar, a cultura, as referências da identidade do lugar. Indo à África, acho que fui buscar a mim mesma lá, mas não me achei. Fiquei triste de sentir que, naquele ambiente, estava tudo sem identidade local, havia um grande apelo de um padrão global. Senti falta de conseguir perceber as referências locais, na arquitetura, no vestir. Mas, pensando sobre o Sul no meu trabalho, é claro que minha obra carrega esse Sul. Meu trabalho é negro, é feminino, é marginal. Eu sou rebelde [risos]. Nunca me preocupei em mascarar ou sufocar nada ou nenhuma característica porque ela poderia não se enquadrar ou não estar nos padrões do que chamam arte. É curioso que, mesmo no Brasil, mesmo aqui em Minas, sendo o meu trabalho deste lugar, ainda assim aqui houve muita dificuldade em entender minha obra e reconhecê‑la, porque ela carrega as raízes do nosso lugar. As pessoas rejeitam as nossas raízes, elas ficam mais confortáveis com o que vem de fora. Há preconceito da gente com a gente. Meu trabalho é brasileiro.
Entrevista concedida a Júlia Rebouças no ateliê da artista, em Belo Horizonte, em ocasião do 19º Festival (março 2015)
- Dados técnicos
Deslocar, 2015 | Instalação
Sônia Gomes
Depoimento da artista Sônia Gomes para o projeto prêmio Pipa 2012
- Ações VB
- 19º Festival
- Outras conexões
Site da artista
- Anexos
Uma tecelã de histórias rumo a Veneza. Nani Rubin entrevista a artista. (O Globo, abr. 2015). [pt]
Mãos de Ouro: a tecelagem da memória em Sônia Gomes, por Alexandre Araújo Bispo (omenelick2ato, ago. 2015). [pt]
Mineira Sônia Gomes é a única artista representante do país na Bienal de Veneza, por Walter Sebastião (Divirta-se, mar. 2015). [pt]