"Purgatorio é uma obra política desenvolvida por meio de extensas entrevistas com a organização Macarthur Diversity Services Initiative; com candidatos a asilo detentores de visto temporário; com refugiados e seus defensores; e com funcionários do ACNUR e da divisão de relações públicas do Departamento Australiano de Imigração e Proteção de Fronteiras. O trabalho foi criado durante uma residência no Campbelltown Arts Centre, no Oeste de Sydney, em 2014. Das muitas canções originais incluídas na obra, algumas são baseadas no formulário 842 de requerimento do visto Humanitário Especial Global; e uma delas se baseia em documentos e afirmações disponíveis no site do então ministro da Imigração, Scott Morrison.
A partir de 1992, a Austrália teve várias políticas de imigração que implicavam um período de detenção para os candidatos a asilo que chegavam ao seu litoral. A versão atual determina que todos que cheguem de barco procurando asilo fiquem detidos por tempo indeterminado nas ilhas de Nauru e Manus, no Oceano Pacífico (perto do litoral de Papua Nova Guiné). Houve diversos relatos de abusos sexuais, mentais e físicos nesses centros. O pior é que a nova legislação prevê que os barcos que chegam não sejam reportados à imprensa; e as identidades dos requerentes de asilo não são divulgadas – o que fortalece a política de desumanização do governo atual. O mais assustador é que esta política é apoiada por grande parte da população australiana.
Musicais e óperas são formatos elevados, que permitem ao espectador se relacionar com temas difíceis de uma maneira não-ameaçadora e envolvente. Tendo isso em mente, criei uma versão musical Orwelliana do Purgatorio, da Divina Comédia de Dante – relacionada não só à política de refugiados australiana atual, mas também a questões globais ligadas ao conceito de ‘processar pessoas’. O trabalho mostra a burocracia kafkiana que isso gera, e funciona em loop; o destino do personagem do ‘Requerente’ (ou Dante) é reviver seus interrogatórios musicais repetidamente. Toda a minha pesquisa para este trabalho se concentrou na narrativa de Dante; e o livreto foi escrito na forma de uma colagem de entrevistas e textos, traduzidos em música por meu colaborador habitual, o compositor Ash Gibson Greig.
Uma parte difícil do projeto, no entanto, foi encontrar requerentes de asilo dispostos a divulgar suas histórias. A maioria pediu anonimato, porque sentiam que estar associados a uma obra de arte de cunho político poderia afetar o processo de aprovação de seus pedidos. Além disso, não foi possível entrar em contato direto com ninguém nos centros de detenção nas ilhas de Nauru ou Manus, devido às leis atuais, por isso só consegui falar com pessoas que chegaram à Austrália antes de julho de 2013, quando as leis foram alteradas. Também consultei defensores dos refugiados, advogados e pesquisei textos.
Em minhas entrevistas, ouvi algumas histórias difíceis e traumáticas e não sabia se estava qualificada para abordá-las diretamente em meu trabalho. O caminho que encontrei foi me concentrar no modo como meus entrevistados foram tratados pelo sistema de imigração australiano – em suas interações com a segurança de fronteira; com o departamento de imigração; e com os assistentes sociais designados para seus casos. Como a minha família também imigrou da Argentina para a Austrália no final da década de 70; e já que estou no meio de um processo para tentar estabelecer residência parcial na Holanda, senti que poderia relatar esses aspectos das histórias deles com pelo menos um pouco de autenticidade."
Pilar Mata Dupont em depoimento à PLATAFORMA:VB (julho 2015)