"Para realizar Rabeca, investiguei na internet sobre rabequeiros na Bahia e quase não haviam registros, a não ser por duas grandes exceções: Eder Fersant e Dona Dominga da Rabeca. Ele, um jovem músico com alguma formação em musica erudita. Ela, uma senhora de 86 anos que toca uma rabeca trazida por seu pai de Goiás, em 1943.
A partir das poucas informações que obtive na internet sobre Dona Dominga e Eder, e com base na pesquisa de campo, escrevi um pré-roteiro. Era um projeto ambicioso, no qual dei vazão às minhas memórias de criança no interior da Bahia. Na infância presenciei muitos rabequeiros nas cidades onde morei. Queria uma narrativa entre a memória, o registro objetivo dos acontecimentos e o realismo fantástico.
Durante a pré-produção viajei com uma pequena equipe (Leonardo Campos, Cláudia Pôssa e Eder Fersant) por nove dias no sertão baiano. Procurávamos rabequeiros por onde passávamos, e nos embrenhávamos por muitas histórias, conhecendo personagens dignos de Fellini. Foi uma das viagens mais fantásticas que já fiz! O filme nos permitiu vivenciar uma Bahia que não é visível nem para a própria Bahia. E voltamos todos modificados desse processo. Foi curto o tempo que estivemos juntos, mas grande foi o afeto que ficou entre nós. Na produção propriamente dita, foram 15 dias de filmagem com uma equipe de 9 profissionais, uma nova 'maratona' pelo interior da Bahia, rica em novas descobertas.
Rabeca é um híbrido de ficção, documentário e videoarte. Um árido barroco contemporâneo que nos remete aos estranhamentos estéticos de Guimarães Rosa, atualizados. É um documento sobre o imaginário fantástico dessa região, sobre suas histórias, costumes e mitos.
Ele dá continuidade a coisas que tenho feito, como o curta 1978 – Cidade Submersa em que abordo a memória de uma cidade desaparecida. Sempre gostei de cruzamentos de conceitos que levem a estranhamentos. O filme é mais uma tentativa de aprofundar essa ideia, funciona como uma consciência que se dá por alucinações, onde quase tudo é real, documental.
Nada é mais universal que as antigas lendas e mitos, e Rabeca busca o atávico, aquilo que acontece no osso da alma e por isso volta sempre. O ferro da palavra, na descoberta de que é o osso, assim como o ferro é o osso do verbo, que marca, fere, corrói, incha, dilata.
Sinto que a Bahia vem sofrendo um processo de apagamento e esse filme é, talvez, a possibilidade de retomar o diálogo com os nossos sertões. O filme é uma tentativa de diálogo com algo profundo e à beira do esquecimento nos recônditos do sertão.
Realizar Rabeca foi e está sendo um ato de guerrilha, de resistência cultural.
Não cabe mais separar a ficção de documentário, as narrativas contemporâneas das narrativas históricas, acho que a hibridização das experiências será sempre mais estimulante. Em Rabeca as coisas acontecem hoje, mesmo que apareçam velhinhos ou instrumentos trazidos por mouros portugueses na colonização. É um filme silencioso sobre os sons de um sertão contemporâneo com rituais que se atualizam. Não é história passada, é presente e contemporâneo. Tudo já estava lá: os turbo-jegues, a mulher dançando no terreiro, o rabequeiro…"
Caetano Dias em depoimento à PLATAFORMA:VB (outubro 2013)
sugiro a inclusão do Livro de Gilvan Barreto, O livro do Sol, Editora Tempo d'Imagem, texto de Adriana Vitor