In the traveler's heart

2013
Distruktur
publicado em 21.09.2015
última atualização 21.09.2015

Blessed is the one who waits in the traveler's heart for his turning.
L. Cohen, Poem 50

"In the traveler's heart foi produzido durante uma residência artística de dois meses em Nida, um vilarejo à beira do Mar Báltico, na Lituânia. A Lituânia foi o último país da Europa a ser cristianizado e até hoje os lituanos se...


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Blessed is the one who waits in the traveler's heart for his turning.
L. Cohen, Poem 50

"In the traveler's heart foi produzido durante uma residência artística de dois meses em Nida, um vilarejo à beira do Mar Báltico, na Lituânia. A Lituânia foi o último país da Europa a ser cristianizado e até hoje os lituanos se descrevem, com um misto de humor e orgulho, como um povo pagão. Na maioria dos lugares onde o catolicismo é a religião oficial, ele foi imposto por forças externas à cultura e aos hábitos locais. Mas, talvez, em poucos lugares a memória e a consciência dessa imposição sejam tão presentes quanto na Lituânia. Ser pagão pode ser entendido como ser sensível às influências das forças da natureza e as formas que elas assumem no mundo real. Esse filme, descrito sucintamente, acompanha um viajante que chega pelo mar em uma terra desconhecida e tem o seu caminho traçado pela atmosfera local. 

Fomos convidados para uma visita prévia à Nida, alguns meses antes da residência. Nessa primeira ida mapeamos a geografia local e filmamos basicamente o disco solar. Chamamos esse pré-trabalho de Os Adoradores do Sol e, a partir disso, surgiu a ideia de ter o sol como elemento central do filme. Quando retornamos, vínhamos com uma verdadeira caravana, levando conosco além de equipamento, película e químicos,  um conjunto de imagens de representações de sol, de diferentes fontes, além de tecidos e materiais para a confecção dos figurinos e objetos de cena dos personagens, que a essa altura já estavam definidos: um viajante a pé, vestindo um poncho e carregando uma bandeira, e o seu duplo.  O duplo, anjo ou demônio, fiel companheiro, real ou imaginário, é muito parecido com o viajante. Interessava-nos que o espectador não soubesse de imediato quem de nós estava em cena e que só tivesse certeza de que eram duas figuras - e não um mesmo personagem representado por dois atores - na cena em que eles se encontram e se encaram frente à frente. 

Além dos conceitos de Sul (região sul do Brasil), de Mágica e Viagem, tínhamos em mente um filme oriundo de uma era remota, pré-tecnológica e anterior ao cinema. Um filme que reatualizasse o passado, composto por imagens e sons que pudessem transportar o espectador à beira de um abismo de tempos imemoriais. Procuramos expressar isso priorizando o olhar do personagem sobre as coisas ao seu redor, as surpresas e o terror que o desconhecido lhe causam. 

Nas primeiras semanas em Nida exploramos o espaço à procura de locações. Isso definiu a geografia narrativa do filme - o caminho a ser percorrido pelo viajante. Em lugares onde a natureza reina, as mudanças são muito rápidas se comparadas aos centros urbanos. Ao longo de apenas um dia a paisagem pode mudar drasticamente. O lago congelado, chão por onde se podia andar, logo derrete e se torna inacessível, ou as dunas que são incessantemente redimensionadas pelo vento. Quando um saía sozinho e descobria uma paisagem que queria mostrar ao outro, nem sempre podia, pois quando retornava não encontrava mais o mesmo lugar. 

O desafio que nos colocamos foi o de construir uma narrativa sobre imagens, que prescindisse de palavras. O aspecto de manufatura também deveria permear tudo que aparecesse no filme e que não fizesse parte da natureza local. Assim, desenhamos e criamos os figurinos, os objetos e o painel dourado com símbolos que aparece no filme. Um quartinho-depósito da Nida Art Colony foi transformado em laboratório, e à noite revelávamos os negativos 16mm filmados durante o dia. Filmávamos com duas câmeras, gravador de som, figurinos e provisões. Para o transporte, colocávamos tudo sobre um trenó que deslizava sobre a neve para as locações. Durante as filmagens os papéis eram invertidos constantemente: enquanto um filmava e dirigia, o outro atuava.

O Viajante exibe evidências sobre sua origem e cultura, o poncho e o chapéu, a estrela e o sol, e personifica uma ideia do sul do Brasil que se identifica com o passado, misterioso e mítico: entre outras fontes, o universo ficcional do filme se inspira livremente na cultura transnacional gaúcha. Projetamos assim algumas formas do sul sobre a paisagem lituana. Em Nida chamávamos uma das locacões de "pampa", pois nos lembrava as colinas suaves e a vegetacão rasteira onde sopra um vento cortante que no Rio Grande do Sul é chamado Minuano. Da literatura colhemos inspiração no conto O sul de J.L.Borges, no sentido do sul representar o passado - no caso dessa ficção, de um viajante no espaço-tempo. A medida que o personagem do conto avança dentro de um trem na direção do sul ele movimenta-se para trás no tempo, desembarcando no passado. A ideia do movimento na direção do sul, como um retorno ao passado, ecoa a nossa própria história e origem, pois o sul do Brasil é a região onde nós dois nascemos e crescemos e de onde partimos há vários anos. 

Nessa relação do sul com o passado nos interessa a questão do tempo. Insistimos em nossos filmes sobre a importância que a natureza de um espaço específico, que pode ser entendida de maneira concreta como o ar ou atmosfera local, influencia e determina as formas locais. Ampliando esse conceito, pode-se pensar que a maneira como se sente o passar do tempo muda de lugar para lugar. E nos parece que no sul há uma tendência do tempo em dilatar-se, de transcorrer mais devagar do que no norte, resultado de uma resistência das formas. Essa resistência pode ter consequências negativas - o tradicionalismo na cultura e o conservadorismo político - ou positivas- as evidências do passado tornam visíveis a linha do tempo. Por isso permitem uma relação mais próxima à história local, mais do que em lugares onde o novo se impõe de forma implacável por transformações constantes. A canção popular que o viajante canta, oriunda do Mato Grosso, coletada por Paulo Vanzolini, traduz um sentimento de forte ligação com o passado e uma saudade por algo remoto e inominável. É um estado da alma, uma melancolia no olhar, típica dos viajantes que vêm do sul."


Distruktur em depoimento à PLATAFORMA:VB (julho 2015)


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Dados técnicos

In the traveler's heart, 2013 | Video, 19’
Distruktur

Cuitelinho | Nara Leão - recolhido por Paulo Vanzolini e Antonio Carlos Xandó

Canção popular que o viajante canta em In the traveler's heart, oriunda do Mato Grosso e coletada pelo zoólogo e compositor brasileiro Paulo Vanzolini

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Outras conexões

“Pelo menos dois livros influenciaram diretamente o filme, o Livro 4, de Aleister Crowley, em que o autor descreve a indumentária e as etapas de rituais mágicos, e Orixás, livro de fotografias de Pierre Verger, que documenta a cultura espiritual das nações Iorubá na África e no Brasil.” 

“O filme retoma e reelabora questões permanentes em nosso trabalho: a viagem, a trajetória por espaços, as manifestações da ideia do duplo, a magia. E, principalmente, a ideia de que o ar molda as formas, de que um filme é moldado pelo ar de onde é feito.”

Anexos

Livreto sobre a obra (Distruktur Im Ausland: Double Première, jan. 2014). [eng]

Gustavo Jahn and Melissa Dullius talk to Teresa Villaverde (CAC interviu, 2013). [eng]

Rastros de anti-matéria: os filmes de Gustavo Jahn e Melissa Dullius, por Pablo Gonçalo (Revistacinética, mai. 2015) [pt]
 

Entrevista com Melissa Dullius e Gustavo Jahn. A aura e o olho da película,
por Pablo Gonçalo e Adriana Vignoli (Revistacinetica, mar. 2015) [pt]
 

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