“Ética e estética, e sua convergência, sempre nortearam minha pesquisa. Há, por um lado, uma preocupação de elaborar esteticamente um discurso que busca ser crítico e auto-reflexivo em relação ao repertório estético das artes. Neste sentido, interessa-me revisitar e responder à formas estéticas que se institucionalizaram através dos tempos, compreendendo-as como expressões ideológicas e políticas de um determinado contexto. Por outro lado, há também uma preocupação ética – como essas “formas estéticas” são construídas e mantidas socialmente, e como operam suas estruturas de circulação.
Forma Livre faz parte dessas indagações. O vídeo é uma reflexão sobre como o discurso da modernidade no Brasil, com suas formas arquiteturais e artísticas ousadas, manifesto na construção de Brasília, conseguiu não só coexistir, mas ser alimentado por relações sociais e políticas extremamente arcaicas fundamentadas na nossa experiência colonial. Essa contradição é o ponto central do trabalho. O movimento de opostos – modernização e passado arcaico, que, apesar de aparentemente opostos, não se anulam -, é a fricção que moveu a produção do trabalho.
Já Linha, uma série de gravuras, busca pensar a forma, neste caso a linha, para além de suas concepções puramente plásticas. O trabalho procura investigar a linha como construção política que condensa e concretiza estruturas de poder e dominação, revelando-se como produto de relações sociais e econômicas. Passando pelos grandes momentos da história do país, desde a divisão da América do Sul entre os portugueses e espanhóis no período da colonização, até a construção da Transamazônica durante a ditadura militar, o trabalho se vale dessa estrutura para pensar a reorganização política do território nacional.
Acho que esses trabalhos são importantes na minha trajetória pois desenvolvem de maneira mais profunda algumas questões sobre as quais já vinha me debruçando - como as relações entre arte e política -, e apontam para um novo horizonte de reflexão. Eles representam um momento no qual a necessidade de situar historicamente os questionamentos suscitados pelas obras ganha força, ao passo que os trabalhos anteriores tinham uma crítica mais categórica e ampla.
Quando digo “situar historicamente” não me refiro a uma “história linear”, baseada na noção de causalidade ou em uma falsa ideia de progresso, mas em uma que se constrói retroativamente a partir das urgências do presente. Neste sentido, o contexto social, cultural e político interferem de maneira direta no meu trabalho – afinal, as formas nunca estão apartadas do entorno que as circunda. Tanto o contexto de produção, como de circulação e recepção. Penso que o trabalho do artista é, em larga medida, questionar de maneira reflexiva a si e ao mundo. É olhar sempre com estranheza as coisas que o circundam afim de problematizar sua normalização, desvelando criticamente suas estruturas ideológicas de sustentação. E é justamente essa capacidade reflexiva, de interrupção do fluxo, que o permite disputar politicamente o simbólico através da articulação crítica entre as formas e os discursos, no sentido da desnaturalização daquilo que já se conhece.
Especificamente em Forma Livre, a atual situação brasileira foi um fator crucial para a elaboração do trabalho. Os ânimos neodesenvolvimentistas que se espalharam pelos últimos anos no Brasil permitiram que olhasse para os anos 50/60 da história nacional e encontrasse muitos paralelos. A euforia pelo futuro, pelo desenvolvimento e progresso econômico, foram muito semelhantes nesses dois momentos. O modelo de desenvolvimento nacional também.
O trabalho então lida com narrativas contemporâneas e históricas. Nessa tentativa de construir uma história à contrapelo, para usar o termo de Benjamin, recorro à uma certa acepção da história como constructo, como plasticidade, passível de ser modelada pelo sujeito que a enuncia. Nesse sentido, é uma ficção documental, pois trata de algo que ocorreu, mas é auto-consciente de seus próprios processos construtivos.
A forma é o veículo que possibilita uma fruição crítica do espectador. É nesse lugar onde as contradições e problematizações podem se materializar. Busco formas que carreguem um caráter contraditório, quer dizer, uma certa linguagem e, ao mesmo tempo sua negação, ou oposição. Buscá-las, ao meu ver, é uma maneira de criar fendas que fazem com que o público surja para se posicionar criticamente com relação ao trabalho, e não que eu, como autora, entregue uma sentença conclusiva.”
Clara Ianni em depoimento à PLATAFORMA:VB (julho 2015)