“Venho trabalhando com vídeo mais sistematicamente desde 2007. O projeto Corpo toma Corpo apontou para um trânsito entre o real e o imaginado, entre os conflitos e as complexidades de uma cidade percebida como um grande organismo vivo, um corpo gigantesco que contém em si inúmeros corpos. Corpos dilacerados, que se perdem na multidão, no tempo, na...
“Venho trabalhando com vídeo mais sistematicamente desde 2007. O projeto Corpo toma Corpo apontou para um trânsito entre o real e o imaginado, entre os conflitos e as complexidades de uma cidade percebida como um grande organismo vivo, um corpo gigantesco que contém em si inúmeros corpos. Corpos dilacerados, que se perdem na multidão, no tempo, na desmemoria; com órgãos sobrepostos, negados ou excluídos, mas sempre pulsantes de vida. Sexualidade, mercado, crueza, fábulas possíveis, desejos e desesperos. O vídeo Belle Époque certamente é um desdobramento destas reflexões, um aprofundamento que tem como eixo principal nossa relação de amor e ódio com o passado dos áureos tempos da borracha no Pará. Nele, o senso de queda, de precipício, estruturam e tornam visíveis tais questões.
Assim é Belém em queda. A cidade viveu seu apogeu econômico na virada do século XX. Com o Ciclo da Borracha, uma Paris n’América foi erigida entre o rio e a floresta. Rasgos 'das luzes' entre jogatina e putas caboclas de grinalda e tabaco. Débâcle-bancarrota que foi e que é. Quiseram amainar a selvageria, a 'brabeza' de espírito, num ímpeto civilizatório. Mas na boca ainda guardamos aquele velho caroço de tucumã! Na janela vizinha, uma mulher se liquefaz em seiva, lodo, limo, suco, sumo. Escorrega no vazio de si mesma. Marialva cega ainda desfia sonhos na rede de embalo. No momento em que os sinos das igrejas despertam Belém, meu umbigo está sendo enterrado detrás da Catedral. Meus ossos e músculos abandonados na curva da Capoeira do Rei, meu fígado posto aos urubus, meus olhos expostos em badeja de prata. Porto Velho aguarda compungido o Madeira virar mar. Pouco importa enxugar as lágrimas dos seringais. Mesmo que andemos pelas ruas de lioz, jamais alcançaremos o passado que se desfaz.
Esta relação conflituosa com este passado me interessa muito. É uma mistura conturbada de orgulho e perda. Algo redimensionado e configurado pelas várias gerações que se seguiram a queda do látex na Amazônia. Se esta questão ocupa um espaço importante no nosso imaginário nortista, ela pouco é verbalizada. Aparece muito mais num certo 'verniz', como aponta o poeta João de Jesus de Paes Loureiro, uma fina camada modernizante de menos de cinquenta anos em contraponto a séculos de acúmulos daqueles que chegaram e vieram das matas, o brabo, o 'inculto'. A memória culta paraense orgulha-se que Pereira Passos tenha sonhado fazer no Rio de Janeiro o que viu na Belém da Belle Époque: seus boulevares, seus flâneurs e a vida a toa burguesa. Ele queria a capital da primeira república brasileira com os mesmo ares de Paris, seus desencontros furtivos, próprios de uma urbanidade acelerada que rasga ao meio a cidade ampliando vias e 'sanitarizando' choupanas.
Até hoje, verdureiros em seus carrinhos de 'burro sem rabo', silenciosos, desafiam o ideário 'civilizatório' europeizante das ruas de Belém. Arquitetura de ferro corroída pelo tempo e peles acobreadas de sol. Belém cheira e fede, é uma cidade eviscerada. Não à toa o mercado do Ver-o-Peso é mais do que um tolo cartão-postal da cidade. Cala à alma do que há de mais profundo aqui: é queda, é vertigem de quebra de paradigmas frágeis, alienígenas. Do que tanto se exige de hibridismo e não-lugar, este mercado responde com falares diversos de tantas ilhas.”
Armando Queiroz em depoimento à PLATAFORMA:VB (julho 2015)
- Dados técnicos
Belle Époque, 2014. Da série Extremo Norte | Vídeo, 1’
Armando Queiroz
João de Jesus Paes Loureiro | Conferência Amazônias: paisagens, narrativas, sentidos | Parte 1
João de Jesus Paes Loureiro | Conferência Amazônias: paisagens, narrativas, sentidos | Parte 2
- Ações VB
- 19º Festival
- São tempos sombrios para os sonhadores