"Eu nasci em Manaus. Cresci vendo o encontro das águas do Rio Negro com o Rio Solimões (Amazonas), numa provocação do imaginário. As águas negras e amarela, aparentemente nunca se misturam, como fossem o negativo e o positivo na elucidação cinética da imagem. Mais do que uma imagem, aquilo era uma pergunta existencial, sobre a relação dos opostos. A cidade era um caldo lúdico, cercada de floresta por todos os lados – o quintal da minha casa.
Minha formação se fez dentro dum universo livresco, radiofônico e de contadores de história. Porque em Manaus, por exemplo, a televisão chegou em 1970. Meus pais, que eram do interior, contavam muitas histórias sobre a família e a vida deles em Maués, lugar que depois vou reencontrar. E quando fui fazer arquitetura na UnB, pensávamos o Brasil a partir da relação entre o Atlântico e a floresta amazônica, essa junção que Brasília realiza. Esse conceito formador nos atingiu de uma maneira brutal e nos obrigou a pensar muito sobre a Amazônia e o Brasil.
Em 1979 ganhei uma bolsa da FUNARTE para fazer um documentário sobre a ‘Cultura do Guaraná entre os índios Sateré-Mawé’. Foi a minha volta ao Amazonas, justamente ao lugar donde nasceram os meus pais. Minha ideia não era somente realizar essa pesquisa sobre a cultura do Guaraná, mas também encontrar as peças dos meus antepassados em Maués. Foi quando descobri que o guaraná ralado e bebido por meu pai todas as manhãs fazia parte de uma verdade ainda maior, da cosmogonia de um povo – os Sateré-Mawé. Esse costume havia sido assimilado pela sociedade amazonense. Chegar na cidade foi fácil, o mais difícil era fazer uma conexão de confiança com os Sateré. Finalmente consegui, e o tuxaua Emílio me disse: ‘Você quer contar a nossa história, mas tem uma história que está acontecendo agora: os ladrões estão entrando pela janela da nossa casa’.
Ele referia-se a uma invasão do território da sua tribo pela empresa petrolífera francesa Elf Equitaine em ‘contrato de risco’ com a Petrobras. Caso achassem petróleo, explorariam juntas, e um dos lugares escolhidos para prospecção foi o território Sateré-Mawé. Só que eles foram lá e invadiram a floresta com centenas de homens com bombas que tinham na composição química o ‘agente laranja’, desfolhante utilizado pelos EUA na guerra do Vietnã. Eram vasilhames coloridos, que chamavam a atenção lúdica dos Sateré-Mawé. O Tuxaua Emílio afirmava: ‘Como vai mexer debaixo da terra sem mexer com quem vive em cima dela? O petróleo é o sangue da terra’. O nome do documentário sobre este episódio veio daí, eles achavam que se tirasse o petróleo a terra ia morrer.
Neste sentido, em vez de um, tive que filmar dois documentários ao mesmo tempo. Mas foi impossível documentar quotidianamente esse episódio. A princípio o projeto era captar as imagens em 16mm. Diante dos novos fatos, logo fui obrigado a abandonar esse suporte e optar por outro que naquele momento encontrava-se em mãos, o ‘vídeo-tape’, uma novidade. Tudo isso me foi facilitado pela TV Cultura-AM. Por outro lado, as limitações logísticas levaram-me a optar por uma colagem – textos, desenhos, fotos, filmes e recortes de jornal. Como não tinha uma câmera própria, inventava a pauta e assim produzia meu próprio material de arquivo para usar no filme. Tinha que pegar as imagens gravadas rapidamente e editá-las, geralmente aos domingos. Outro recurso que utilizei para superar as limitações das gravações em locações foi recorrer as gravações em estúdio, onde pude usar o chroma-key.
Toda essa empreitada resultou em dois documentários. O primeiro, Guaraná, Olho de Gente, sobre a cultura desta fruta entre os Sateré-Mawé, foi realizado em 1982. O segundo, O Sangue da Terra, trata da luta pela defesa, indenização e demarcação do território indígena, e é do ano seguinte.
Esses dois documentários foram e permanecem até hoje numa fonte de referências para os próprios índios. Eles os exibem para relembrar, por exemplo, a história do Porantim, um objeto sagrado, representado numa clava com inscrições da história dos Sateré. Um lado da clava conta a história da origem do povo, da sua gênese, e o outro conta a história da guerra. A guerra ancestral pela permanência na terra desde sempre até o encontro com o ‘mundo civilizado’."
Aurélio Michiles em depoimento à PLATAFORMA:VB (agosto 2014)