"Em agosto de 2012, ao retornar para Cachoeira após uma estadia em São Paulo, onde cursava disciplinas na pós-graduação na PUC, encontrei a velha cidade do Recôncavo imersa em muita tristeza e dor. Os motivos foram as mortes, em um período muito curto, de duas grandes sacerdotisas do candomblé: Maria Helena do Vale, conhecida como Mãe Madalena, e Dona Estelita de Souza Santana. A cidade se ressentia com a enorme perda espiritual e patrimonial.
Na época do sepultamento de Dona Estelita, fui convidado por uma amiga para tomar um café em sua casa. Chegando lá fomos para a cozinha, nos fundos da residência. Ela abriu a janela descortinando uma paisagem que margeava o rio Paraguaçu. Era final de tarde e duas grandes ilhas fluviais aportavam uma quantidade sobrenatural de garças brancas. Não resisti a tanta beleza, montei o equipamento e comecei a realizar umas tomadas. Minha amiga preparava o café e, ao ver o meu deslumbramento, disse: 'Conta um antigo mito do Recôncavo da Bahia que, quando morre uma velha sacerdotisa negra, ela se metamorfoseia em garça branca transportando sua alma de volta para África. Alguma dessas garças deve levar a alma de Dona Estelita para o Orum.'
Estávamos na véspera da Festa da Irmandade da Boa Morte, festa da confraria das mulheres negras que ritualiza o culto de Nossa Senhora através de um "catolicismo-barroco", próprio das mestiçagens do Recôncavo. A festa é ligada à vida e a morte e faz menção à passagem da viagem espiritual do Aiyê ao Orum.
A proximidade da festa e os falecimentos me emocionaram profundamente. Resolvi então fazer uma homenagem, uma espécie de réquiem para a morte, aos 105 anos, de Dona Estelita de Souza Santana, juíza perpétua da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte.
Na semana seguinte, estive presente na primeira noite da festa e registrei em vídeo a 'noite Funfun'. Funfun é a cor branca em yorubá, e rege a primeira noite do velório ritual de festa da Irmandade. Funfun é também a cor do luto de alguns povos orientais, é a cor do deus negro Obatalá – deus da pureza e santidade, maturidade e sabedoria.
Durante a realização da missa, onde se vela a imagem de Maria morta, fui tomado por uma energia, uma sensação da presença da recém-falecida Dona Estelita. Posteriormente, editei em duas telas a videoinstalação com os arquivos dessas experiências. Elas me remetem à zonas de percepção muito tênues entre arte-vida.
Funfun é um trabalho que se encontra no limite da etnografia e das narrativas mitológicas."
Ayrson Heráclito em depoimento à PLATAFORMA:VB (outubro 2013)