"Em meados de 2004 meu irmão Emanuel gravou um protesto em frente à câmara de Buenos Aires, onde estava sendo aprovada uma lei que, entre outros pontos, proibia que vendedores ambulantes, prostitutas e travestis trabalhassem na via pública dentro de um certo raio. Emanuel registrou o protesto bem de perto, protegido por um cerco midiático criado por várias outras câmeras, que transmitiam ao vivo os acontecimentos. Flanqueada pelos meios de comunicação, a câmera de meu irmão passou despercebida, quando talvez, em outra situação, ele estaria desprotegido e vulnerável. As câmeras de televisão na Argentina têm um status que não possuem em outros lugares, e por isso uma câmera menor pode ser tomada como intrusiva e suspeita.
O protesto tinha uma razão específica no contexto do país naquele momento, mas o que me interessava, quando vi o material, era desvirtualizá-lo, tirá-lo da caixa em que poderia ser posto. É muito difícil desligar estes protestos da imagem midiática do noticiário e de um contexto político. E essa era minha intenção: gerar distância em relação ao protesto para poder reposicionar o material gravado em outro terreno e assim reencontrar uma imagem que ajudasse a pensar essas manifestações, ou a luta de interesses entre o poder e o povo e os modos de representação.
A televisão e seus interesses deturpam e espetacularizam ações como essa, usando-as com fins comerciais e também políticos. O meio televisivo é uma ferramenta muito poderosa e em geral mal utilizada. Direciona o olhar sobre a realidade com intenções poucas vezes neutras. Por sua visibilidade e alcance, gera uma realidade paralela. A responsabilidade sobre essa realidade é muito grande, mas os interesses são outros e neles se perde a responsabilidade moral, que deveria ser a principal preocupação.
A imagem televisiva tem uma marca muito particular. Não costuma refletir com a dimensão necessária sobre uma situação de conflito como a imagem do vídeo. É bom ter diversas perspectivas, e talvez uma delas – e a que me interessa nesse caso – seja a desvirtualização do protesto do contexto midiático.
A realidade hoje em dia é regida por essa manipulação da linguagem. Os meios de comunicação geram um bom material que possibilita uma leitura do nosso tempo. E nossa realidade é, por sua vez, uma fonte para a leitura dos meios de comunicação.
Creio que podem haver diferentes maneiras de representar uma ação política, mas é sempre mais complicado encontrar um formato acessível desvinculado dos clichês ou classificações, que tente aproximar-se por meio de um discurso original. Só assim considero que podem ser abertas outras portas de entrada à recepção de uma ação, quando o registro tenta ser algo mais que informativo ou documental. Minha ideia era desvincular o protesto de qualquer ação específica. O tratamento aplicado na imagem visa situar a manifestação em um tempo abstrato, que poderia ser no futuro ou no passado.
Desde o começo nos meus trabalhos se vislumbra a necessidade de refletir sobre determinadas imagens que politicamente remetam à realidade. Talvez eu não trate sempre de temas que sejam expressamente ‘politicamente classificáveis’, mas definitivamente são políticos em sua concepção. Aqui podemos voltar ao mesmo ponto, talvez seja possível fazer um trabalho que seja político sem que diretamente trate de um fato político ou que queira ser literalmente político. Há certos interesses, decisões e até mesmo formas de ver e enquadrar uma imagem que também podem ter uma concepção política em sua origem.
Exibir o vídeo em Buenos Aires é diferente de mostrá-lo em Amsterdam [o artista, nascido na Argentina, reside atualmente na Holanda]. Lucharemos fala de uma situação específica que um argentino poderia isolar ou reconhecer melhor. Em outros lugares, ele pode ser relacionado só com a crise do ano 2000.
Lucharemos dialoga com uma época. Com um momento onde parece ter havido uma reativação da luta contra o poder. A luta de Lucharemos é um protesto, como uma rebelião que poderia ter ocorrido em outro lugar, para além deste tempo e da Argentina. Mas não há muita diferença entre os manifestantes derrubando as portas da câmara e o povo derrubando os portões do tirano na Idade Média. Desassociar a imagem do registro televisivo a que estamos acostumados faz com que se possa conceber outras opções da realidade."
Sebastián Diaz Morales em depoimento à PLATAFORMA:VB (agosto 2014)