“O vídeo Barrueco nasce da minha pesquisa de mestrado defendida em 1998, Segredos no Boca do Inferno – arte, história e cultura baiana, que tinha como tema uma investigação histórica, antropológica e sociológica sobre a Bahia. Era uma espécie de tapeçaria que começava no período da colonização, da cana-de-açúcar, passando pelo fenômeno da escravidão, e como isso reverberava contemporaneamente em Salvador e na Bahia na década de 90, onde estava surgindo todo o movimento afirmativo da cultura negra e uma valorização da cidadania.
Nessa pesquisa comecei a trabalhar com os materiais que seriam emblemáticos para se pensar um corpo cultural baiano, composto de certa forma pela marca do ‘holocausto’ da escravidão: o açúcar, a carne e o azeite de dendê. Nos anos 2000 comecei a me aprofundar nesses materiais e a partir daí desenvolvi as estratégias e as táticas de afirmação de uma cidadania negra e uma reflexão principalmente sobre o pertencimento negro para a construção da cidadania brasileira.
A palavra barrueco se refere a pérolas imperfeitas. Me interessava pensar a ideia de uma beleza impura, não clássica. Algo complexo, mestiço, que é o fenômeno cultural brasileiro, e especificamente as dinâmicas que são criadas a partir da vinda de africanos para o Brasil. O vídeo faz parte de uma série de trabalhos que são uma reencenação desse passado escravocrata. É um aprofundamento na solidão que isso causou, no esquecimento, na negação de uma memória e, ao mesmo tempo, é um aprofundamento no renascimento de uma outra cultura, americana, de diáspora.
Barrueco tem a presença de signos que de certa forma fazem parte de uma gramática visual que eu estava construindo no meu trabalho. Ele inaugura com a imagem do mar, e depois o colar de pérolas sobre esse torso negro, onde as pérolas sangram dendê. O dendê é o sangue, o sêmen e a saliva, é o sangue vegetal, que muitas vezes substitui o sangue animal em ritos do Candomblé. A pintura do Turner, O Navio Negreiro, que é uma obra que cito em outros trabalhos. Além disso tem a arraia, que é uma alegoria a um condor do Atlântico – o condor, que Castro Alves cantava como signo da liberdade, no Atlântico Negro para mim é uma arraia. E o vídeo se encerra com uma iconografia religiosa de Orixás que crio a partir do movimento das mãos e depois retomo em outro trabalho, As mãos do Epô.
O poema de Mira Albuquerque, presente no vídeo, faz referência a uma escrava, Esperança de Boaventura, e se baseia em um documento oficial, no qual Esperança, após a abolição, é perguntada de onde veio. E aí ela recria toda uma África aqui na Bahia, porque na verdade não sabia muito bem as referências dessa origem. O poema amarra o fenômeno de reinvenção de uma memória que foi perdida, amputada, e fala também do que é a construção desse ser na pós-abolição. O próprio nome dela, como outros – os Aleluia, os Espírito Santo –, não é de descendência, de famílias vindas de africanos, e indica o quanto o passado foi zerado, o quanto esse período foi violento e perverso.
Boa parte da produção negra na arte brasileira, quando legitimada pelo sistema, foi de uma forma depreciativa, atribuindo a ela um espaço de uma arte produzida por um população despossuída de recursos financeiros, e daí reduzida à condição de folclórica e popular. Mas essa produção sempre existiu de forma potente e inquieta. A Lina Bo Bardi já pensava que os rumos de um projeto cultural brasileiro tinham que partir justamente dessa produção, porque aí que estão todas as invenções, as saídas, as soluções dadas para existir no Brasil. Só que o sistema de arte brasileira ainda é muito preconceituoso, e não consegue entender que essa produção é revolucionária, é dinâmica, e constitui de certa forma o que nós compreendemos por contemporâneo hoje.
No momento tenho me concentrado muito na análise dos projetos que passam ao largo da narrativa hegemônica do modernismo. Tudo que aprendemos em relação à arte moderna no Brasil usa referências paulistas e a um pensamento que foi construído a partir delas. Então acho necessário desconstruir isso, dar também destaque a outros pensamentos que abordam a relação com o moderno, os futuros, a ideia do progresso para o Brasil, mas que pensavam por outras vias, outros projetos culturais.”
Ayrson Heráclito em depoimento à PLATAFORMA:VB (agosto 2014)