“Quando fiz Bare Life Study, estava desenvolvendo um projeto que durou quatro anos no qual tentava explorar o que é o interrogatório militar e, num sentido mais amplo, o que acontecia nas prisões militares naquela época. Isso aconteceu logo após a mídia revelar os abusos contra prisioneiros em Abu Ghraib e, ao estudar o fenômeno, ficou muito claro para mim que as prisões militares eram locais muito importantes, que determinavam o desenrolar da guerra.
Como parte daquele projeto, entrei num curso oferecido por interrogadores militares aposentados para aprender o que eles fazem e como se comportam. Aprendi muito sobre o trabalho realizado em conjunto pela polícia do exército e os interrogadores militares. Bare Life Study tratava da coreografia do policiamento nestes contextos de prisão. Eu estava tentando explorar uma forma de coreografia política que dramatizasse a sujeição dos prisioneiros. Queria entender o que estava acontecendo, por que estávamos fazendo aquilo, como era e por que as autoridades estavam tentando esconder. Nós só vimos uma parte muito pequena do material fotográfico disponível sobre abuso contra prisioneiros. O governo dos EUA decidiu controlar o acesso dos cidadãos americanos ao material.
O 11 de setembro mudou a vida política e social do meu país. A transformação ideológica aconteceu muito rapidamente e foi muito assustadora. Naquele período, sentia que, artisticamente falando, eu queria pensar a guerra e o que estava acontecendo conosco, por que não estávamos tentando parar a guerra e o que não entendíamos sobre ela. Será que era porque não queríamos saber o que estava acontecendo? Porque será que o governo parecia estar conseguindo convencer as pessoas de que a tortura era necessária?
Bare Life Study foi minha maneira de abrir a Caixa de Pandora, de conseguir fazer as pessoas verem o que estávamos fazendo. Eu era criança durante a Guerra do Vietnã e tenho lembranças muito claras daquele tempo, porque tinha vizinhos cujos filhos estavam sendo mandados para a guerra e porque ela era notícia todos os dias. O público era muito mais consciente dos efeitos da guerra porque víamos sacos para cadáveres na televisão todas as noites. Os jornalistas eram muito eficazes em convencer o público de que a guerra era ruim.
Os quatro anos que passei investigando os interrogatórios militares me permitiram trazer uma conversa sobre a guerra para o universo da arte e para o universo da performance. As obras tornaram-se meios para iniciar debates sobre práticas de performance que não são nem teatro tradicional nem arte, mas contêm elementos de ambos. Os interrogadores com quem estudei se consideravam bons atores, já que tinham de saber interrogar com eficácia. O prisioneiro também precisa interpretar um papel dentro da prisão e durante um interrogatório. Os prisioneiros têm de vestir um figurino e assumir um número como sua nova identidade. Quase todos seus movimentos têm de seguir um roteiro. Eles estão dentro de um espaço o tempo todo e expostos o tempo todo, como um ator no palco. Durante um interrogatório, o objetivo é fazer com que o prisioneiro diga as palavras que o interrogador quer ouvir. O interrogador é um diretor repressivo que obriga o prisioneiro a “lembrar” suas falas.
Foi muito interessante ouvir e testemunhar isso: o modo como meus professores desenvolviam os personagens interrogadores que eles acreditavam ser mais eficazes para a pessoa que interrogariam, com base em sua compreensão daquela pessoa. Aquilo me levou a compreender coisas sobre a performance e suas implicações nessas outras áreas. Eu também podia tirar proveito da minha familiaridade com os discursos pós-coloniais sobre orientalismo e as aplicações políticas da antropologia, já que os interrogadores norte-americanos estavam recebendo textos bastante problemáticos sobre árabes e muçulmanos para ler. Eu podia usar o que sabia de orientalismo para compreender uma situação de guerra e a configuração das questões interculturais naquele contexto.
A reencenação é um elemento prevalente na cultura norte-americana. Muito da cultura do entretenimento tem a ver com reencenação. Muitos documentários hoje incluem reencenações para preencher os vazios em material de arquivo ou ilustrar relatos em primeira pessoa. A reencenação tornou-se uma maneira de as pessoas se conectarem com seu passado. Não se trata de um meio de comunicação tão desconhecido. É semelhante a muitos rituais e muitas religiões até reencenam histórias de textos sagrados como a Bíblia.
Eu acho que às vezes, os artistas pretendem engajar-se em análises políticas, mas em outras ocasiões não, e isto acontece sem que o artista tivesse a intenção. Por exemplo, quando Picasso pintou a Guernica ele queria retratar os horrores da guerra. Acho que, quando a cópia da Guernica foi coberta nas Nações Unidas Nations em 2003 para que o então secretário de Estado dos EUA, Colin Powell, fizesse um discurso a favor da guerra sem ter aquele retrato infame como pano de fundo, a obra serviu a um propósito político diferente e afetou a política de uma forma diferente."
Coco Fusco em depoimento à PLATAFORMA:VB (agosto 2014)