A Arca dos Zo'é

1993
Dominique Gallois, Vincent Carelli
publicado em 08.08.2014
última atualização 28.08.2014

“Acho que o meu contato com os povos indígenas é parte da minha formação enquanto pessoa. Foi uma experiência radical ir, aos 16 anos, para os Xicrin, uma tribo isolada no Pará. Lembro sempre do momento da primeira aterrissagem, em um teco-teco, em que tive algo como um flashback da origem da humanidade, uma coisa muito forte. Quando descobri os...


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“Acho que o meu contato com os povos indígenas é parte da minha formação enquanto pessoa. Foi uma experiência radical ir, aos 16 anos, para os Xicrin, uma tribo isolada no Pará. Lembro sempre do momento da primeira aterrissagem, em um teco-teco, em que tive algo como um flashback da origem da humanidade, uma coisa muito forte. Quando descobri os índios fiquei fascinado com tudo o que vi. A fotografia surge aí como um registro, uma memória urgente, inadiável, de uma coisa completamente desconhecida pela maioria do mundo. Aí começo minha carreira de fotógrafo documentarista, eu diria.

Depois de um convívio longo com os Xicrin, ingresso em 1971 na FUNAI, algo bem traumatizante. No meio dos anos 1970 saio e tomo parte na criação do Centro de Trabalho Indianista, uma ONG para fazer um indigenismo alternativo, e concomitantemente ingresso no Centro Ecumênico de Documentação e Informação, que hoje é o Instituto Socioambiental, para fazer a pesquisa de imagens para o primeiro banco de dados confiável sobre a realidade indígena. Surge então a questão de que a memória dos povos indígenas, dispersa e apropriada por terceiros, pode ser reagrupada e devolvida, o que seria de suma importância para as novas gerações.

Em 1986, quando criamos o VNA, filmar e mostrar imediatamente era portanto a ideia fundamental. Os índios entendiam que a fabricação da imagem era uma coisa possível e imediata, e isso foi acolhido de uma maneira realmente eufórica. No trabalho com os Waiãpi, a parceria com a Dominique Gallois permitiu uma tradução detalhada das reflexões que isso gerava, pois ela trabalhava havia muitos anos com eles e falava fluentemente a língua. Começamos uma experiência que gerou uma série de filmes, entre eles O Espírito da TV, que desembocou na Arca dos Zo’é.

No Espírito da TV, Wai Wai, o cacique, resolve fazer um périplo pelas aldeias Waiãpi, como que em uma campanha. As projeções do que filmávamos eram a caixa de ressonância do seu discurso de resistência cultural. Ele fazia para os outros índios uma reflexão extremamente sofisticada sobre o que viam, e também sobre como deviam manipular a imagem, já que queria entender sua repercussão no mundo de fora.

A Arca dos Zo’é é consequência do Espírito da TV porque entre as imagens que projetei estavam as reportagens da Globo sobre os primeiros contatos com os índios Zo’é. Apesar das diferenças dialetais, era uma língua Tupi, eles entendiam o que os Zo’é falavam e ficaram fascinados. Passou a ser um desejo do Wai Wai conhecer pessoalmente os Zo’é e filmá-los. Já que ele não tivera uma câmera para trazer aos jovens uma imagem do seu avô, conhecê-los e filmá-los seria a possibilidade de trazer as imagens dos seus ancestrais.

O filme foi simplesmente realizar esse desejo profundo do Wai Wai, um personagem brilhante, um intelectual indígena. No final voltei à aldeia dele para mostrar as imagens dos Zo’é e filmar os comentários e as analogias que ele fazia entre os Waiãpi no mundo de hoje, com todas as suas novas formas híbridas de vivência e de costumes, e os Zo’é, seus ancestrais. Esses dois filmes são as pedras fundamentais do projeto, ao menos na sua primeira etapa.

Dez anos depois, começa o projeto de formação e capacitação de cineastas indígenas. Hoje, a produção a partir das oficinas geram imediatamente produtos que são reconhecidos por qualquer público e pela crítica como a revelação de um novo olhar sobre a realidade indígena. E politicamente outro grande desejo dos povos indígenas ganha uma dimensão importante, que é romper a sua invisibilidade nacional, internacional, e ter seu reconhecimento não como índios, mas como povos específicos, com línguas e culturas específicas.”

Vincent Carelli em depoimento à PLATAFORMA:VB (agosto 2014)


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Dados técnicos

A Arca dos Zo'é (1993) | Vincent Carelli e Dominique Gallois

Vídeo | 21'25"

A Arca dos Zo'é (1993)

Depoimento Lilia Schwarcz | Memórias Inapagáveis, 2014

A antropóloga, historiadora e curadora brasileira Lilia Schwarcz fala sobre o vídeo A Arca dos Zo’é (1993)

OS MESTRES LOUCOS (1955) | JEAN ROUCH

Média-metragem em que Jean Rouch investiga as estratégias de resistência de povos colonizados em relação a seus colonizadores. O cinema direto desenvolvido por Rouch a partir deste filme guarda semelhanças com o método desenvolvido por Vincent Carelli.

Ações VB
10º Festival
Memórias Inapagáveis
Outras conexões

“Em 1988 foi publicado um artigo falando que a analogia entre eu e Jean Rouch era clara desde esse momento, e eu nem sabia quem era Jean Rouch, o que era cinema direto.”

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