"Esse trabalho nasce de uma necessidade urgente de falar sobre as questões raciais de uma forma pessoal. É um grito, um desabafo que precisava fazer naquele momento. Vivia em um cotidiano de muita pressão por ser negro, estava sendo muito afetado e precisava refletir sobre isso com a dança, que é o meu instrumento de comunicação. Não...
"Esse trabalho nasce de uma necessidade urgente de falar sobre as questões raciais de uma forma pessoal. É um grito, um desabafo que precisava fazer naquele momento. Vivia em um cotidiano de muita pressão por ser negro, estava sendo muito afetado e precisava refletir sobre isso com a dança, que é o meu instrumento de comunicação. Não estava muito preocupado com a estética, queria encontrar a forma mais eficaz de expressar o que estava vivendo. A princípio achava que seria um fracasso porque utilizava um estrutura que não via em outros trabalhos do meu meio.
Não foi uma situação pontual que despertou o desejo de realizar o trabalho, ele faz parte de um processo de anos. Ser barrado na porta do banco, ser seguido por seguranças em farmácias. Sentia um desconforto no mundo. Queria entender: que corpo é esse que tanto incomoda? O espetáculo questiona esse desconforto.
Meu trabalho está muito ligado à minha identidade. Através das minhas obras questiono minha sexualidade, o meu eu no status social e na sociedade. A consciência da questão da cor construí desde criança. Nós negros temos nossa questão histórica, de 'minoria', mas na verdade a história que nos coloca como minoria, para baixo da escala social. Aos poucos essa preocupação foi sendo criada para mim. Me perguntava: que cor é essa? Qual é meu papel na sociedade? E meus trabalhos acompanham a situação que vivo no mundo. São minha vida, a junção dela e da arte.
Já fui bailarino de companhia e de grupos de dança e, a partir de um certo momento, o que fazia com a dança não respondia ao que vivia no mundo. Meu trabalho artístico falava de assuntos de outros e eu vivia um abismo: eu na vida e eu no palco. Quando mudei para Belo Horizonte as questões de identidade ficaram ainda mais fortes. Passei a desenvolver um trabalho próprio, fora das companhias. Aos poucos comecei a entender mais essa questão de cor e a organizar o meu discurso sobre o que é ser negro no Brasil. A partir daí, introduzi esse pensamento dentro do meu espetáculo e minhas questões se converteram em forma. Deixei de usar os códigos da dança, arabesques, grand jetes e plies, e procuro materialmente os movimentos mais de acordo com esse pensamento. Identidade e dança caminham juntas. No momento em que me questiono como indivíduo, minha dança também se constrói como linguagem.
O Samba é uma síntese de ideias, de gestos e movimentos presentes em outros trabalhos. Tento colocar em cena a dança para além da forma em uma tentativa de fazer uma ponte, de explodir a dança, de fazer com que ela interfira na minha vida e eu interfira no palco. Ela não está pronta e acabada e o palco ultrapassa as quatro paredes. Ele está na minha vida e minha vida interfere nele. O Samba tem muito do pensamento da dança contemporânea. Eu desenvolvi minha própria linguagem, sem depender de uma escola ou de um nome. Pude colocar o meu próprio sotaque, o meu acento. Isso é uma coisa do contemporâneo, você pode ser, não tem que seguir um padrão. É uma dança pessoal, um instrumento libertador, cada um pode criar seu movimento, desde que contextualize e comunique; a dança é um instrumento de comunicação.
No frappe do ballet clássico você bate o pé, no Samba eu tremo a bunda e chamo de frappe de fesse. A mesma coisa com o ronde bitte: eu rodo o pênis, que no clássico é o ronde jambe. Por que não? O pênis é uma parte do corpo... Eu não invento nada. Ninguém é gênio, ninguém inventa. A partir de uma escola, do clássico, eu crio minha linguagem, onde posso fazer um ronde pênis e um frappe de fesse. Também não quero abrir uma escola disso, diz respeito à mim, é o meu jeito de falar. Cada um que crie seu frappe e seu ronde, seja ele qual for.
Procurei um figurino para o Samba e não achei, entendi que tinha que estar nu pois a pele é o próprio figurino. Ela não é só o tema, é a própria textura do trabalho, cria as camadas dentro dele. Como diz a historiadora Lilia Schwartz, essa questão do racismo no Brasil é uma questão de marca, de pele. Falo dessa pele, desse povo preto que chegou como escravo e dele foi arrancado tudo, a família, a comida, seus deuses, a cultura, a língua. O que sobrou foi esse corpo que resiste até hoje, onde está toda nossa memória.
Trabalho em cima dos clichês, não os aceito como verdade, mas afirmo sua existência e reflito sobre eles. A sexualidade, o humor e o exótico estão em pauta. Sou construído a partir do olhar do outro e aceito ou não essa construção. Essa reflexão entra no espetáculo como textura. Por exemplo, eu uso uma boca de plástico, que engrossa ainda mais os meus lábios, e uma bota que representa a mulata. O sapato é o símbolo da libertação para os escravos, mas uso uma bota que representa a dança sensual. Falo desse elemento contraditório, que liberta, mas que, ao mesmo tempo, escraviza, te coloca dentro desse lugar do exótico.
No espetáculo uso a bandeira do Brasil, símbolo da nossa pátria, como cenário dessa história e também como parte do figurino. Por estar cortada, ela representa um lugar fluido, líquido, dinâmico, e simboliza a nação. Para mim, a nação só existe a partir do cidadão, do indivíduo, ela é feita de pessoas, de cultura, da geografia. Por isso, posso vestir a bandeira, pois sou esse Brasil, sou transpassado por ele e o transpasso também. Estou imerso e ele está imerso em mim. Tenho minha fala, minha cultura e, nesse sentido, sou o agente transformador dele. O ato de introduzir a bandeira no ânus criou uma grande polêmica. As pessoas interpretam como se eu mandasse o país 'tomar no cú', mas também são possíveis outras leituras: o meu ânus também é meu lugar de prazer e eu posso colocar o meu país no meu lugar de prazer. A bandeira, então, funciona como um adorno, uma extensão do meu corpo e nesse ato demonstro a relação que estabeleço com o país, de paixão, de amor e ódio. Vesti-la é uma maneira de recuperar esse sujeito que foi tirado de mim, tirado da gente na nossa história negra. Um sujeito que teve o corpo visto como objeto, quase como se fosse um implemento agrícola, um facão, uma enxada, mas que é um sujeito, que é a própria nação."
Luiz de Abreu em depoimento à PLATAFORMA:VB
- Dados técnicos
O samba do crioulo doido (2004) | Luiz de Abreu
Performance | Aproximadamente 20'
O samba do crioulo doido (2004)
Depoimento Luiz de Abreu | 18º Festival
A carne (2003) | Elza Soares
O Guarani (1870) | Antônio Carlos Gomes
Ave Maria (1999) | Jorge Aragão
O signo do Caos (2003) | Rogério Sganzerla
- Ações VB
- 18º Festival
- Memórias Inapagáveis
- O “sul” está em toda a parte
- Outras conexões
“Faz parte da trilha sonora do Samba a receita da feijoada em francês. Ela tem uma pegada de samba e me coloco nessa receita, como um corpo coisa que pode ser facilmente consumido. Um corpo que não é inteiro, é cortado, segmentado, fragmentado, não tem cabeça. Me coloco como uma prostituta, dançando em uma boate, ou como um corpo que está ali exposto.”
“No desenvolvimento do trabalho encontrei um livro que me impressionou muito, O negro na fotografia do século XIX (2004), por George Ermakoff.”
"No período em que desenvolvi o Samba, li muito Stuart Hall."
A identidade cultural da pós modernidade (1992), por Stuart Hall. [pt]
Da diáspora: Identidades e mediações culturais (2003), por Stuart Hall [pt]