Varela na Copa

1986
Olhar Eletrônico
publicado em 29.11.2013
última atualização 18.08.2014

"No trabalho [da produtora Olhar Eletrônico] havia um rodízio permanente de funções. Todo mundo passava por cada etapa do processo da realização: da direção da kombi à direção do programa de TV. Incluindo aí fazer câmera, fotografia, edição, texto, cenário e apresentar o...


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"No trabalho [da produtora Olhar Eletrônico] havia um rodízio permanente de funções. Todo mundo passava por cada etapa do processo da realização: da direção da kombi à direção do programa de TV. Incluindo aí fazer câmera, fotografia, edição, texto, cenário e apresentar o programa. Curiosamente, esta última era a tarefa que menos agradava à maioria do grupo. Por isso, na hora de ir para a frente da câmera, existia um revezamento. Como o das peladas de futebol quando ninguém quer ser o goleiro.

Foi numa das minhas vezes de ser o “goleiro” que surgiu o rascunho do personagem Ernesto Varela. Começou com uma voz diferente, uma situação non-sense, um modo desajeitado de olhar para a câmera para disfarçar o constrangimento… Pimba! Apareceu uma figura no vídeo bastante diferente de mim. Todo mundo riu e para mim foi um alívio muito grande. Era muito mais gostoso interpretar um personagem do que ser eu mesmo naquele momento insuportável que é ficar diante da maldita arma de destruir espontaneidade que se chama câmera de TV.

Estávamos na cidade de Santos, sem saber o que fazer numa tarde de chuva. Descemos a serra de kombi com duas missões: gravar à noite um show de Itamar Assumpção e inventar alguma história para fazer durante o dia. Já sentíamos a pressão e a voracidade da televisão. Só depois de estrear tinha caído a ficha. Tínhamos que preencher duas horas de televisão por semana. Haja saúde e idéia para gastar.

Diante de um relógio digital quebrado na praia, gravei um boletim daquele repórter ainda sem nome. Surpreendente variação climática em Santos, 85 graus na Praia do Gonzaga! Voltamos a São Paulo e aquela brincadeira ingênua virou um quadro de humor do programa. Foi colada uma vinheta 'Santos Urgente', com as letras aparecendo nervosas sobre um papel em branco numa máquina de escrever. Trilha sonora vibrante de 'Breaking News' à la CNN. O que dava uma credibilidade telejornalística e deixava aquele absurdo bastante divertido. O autor da vinheta e o câmera-man debaixo de chuva foi Toniko Melo, hoje um dos diretores mais criativos e atuantes da publicidade brasileira.

Mas o parceiro no parto do personagem que depois me acompanharia por vários anos viajando pelo Brasil e o mundo foi outro. Fernando Meirelles bateu os olhos no material e ficou com a mente em chamas. Começamos juntos a inventar mil outras situações para aquele germe de repórter. Decidimos que ele ia falar de economia, política, esportes e entrevistar personalidades de verdade.

Começamos com uma reportagem que explicava a dívida externa brasileira num terreno abandonado na Avenida Paulista. Foi calculado o preço de cada cacho de banana plantado ali no metro quadrado mais caro do Brasil. E assim sugerimos às autoridades a saída para a crise nacional: derrubar todos os prédios dos bancos da Paulista para a produção daquele tipo de banana. O governo militar não aceitou a sugestão e a dívida externa está aí até hoje. Mas a televisão ganhou um novo personagem: o repórter Ernesto Varela.

Detalhe importante: os famosos óculos vermelhos- que viraram marca registrada do personagem- foi adereço improvisado, emprestado na hora da gravação pelo operador de áudio Fernando Rozo. Hoje DJ respeitado no circuito festeiro paulistano, Fernandinho era um moleque cheio de ginga da Vila Madalena que cada dia aparecia com uma cor de óculos diferente. Naquele dia, calhou de ser o vermelho.

Graças ao Varela, tive encontros com seres inusitados. Do cacique Raoni a Paulo Maluf, de Nelson Piquet à guarda do exército vermelho na União Soviética, de garimpeiros em Serra Pelada ao Chico Buarque em cima do palanque das Diretas-Já. Foram viagens pelo Brasil e o mundo que consumiria boa parte dos próximos anos da minha vida. [...]

Com o Varela radicalizamos a participação da câmera, o tal 'Olhar Eletrônico', na história. Ao contrário do credo do jornalismo tradicional, não tínhamos nenhum receio de misturar ficção, realidade e até o próprio camera-man na edição da narrativa. Varela começou a pensar alto e conversar diretamente com o seu câmera-man. Assim surgiu mais um personagem de ficção, a contraposição ideal para as estrepolias do repórter, o câmera Valdeci.

Nos anos 80, além do Fernando, houve outros dois Valdecis, igualmente parceiros de criação, edição e direção. Cada um deles da sua maneira ajudaram a aperfeiçoar e ampliar o personagem. O primeiro deles foi Toniko Melo, com quem lá no início criei o episódio do relógio quebrado em Santos. Extremamente criativo e habilidoso com as imagens, tive com Toniko um verdadeiro “casamento” profissional. A palavra é essa mesmo já que passamos grande parte do tempo convivendo vinte e quatro horas por dia na cobertura da Copa do México 86. E também numa viagem histórica a Cuba, no verão de 1985, quando nos tornamos os primeiros profissionais da TV brasileira a filmar livremente na ilha de Fidel.

O talento de Toniko para a cinematografia trouxe para o Varela um arrojo e beleza de imagens surpreendentes. Na Copa marcamos dois gols muito comentados. A famosa e polêmica entrevista com o presidente da CBF, o deputado Nabi Abi Chedid. E um quadro com imagens inéditas que conseguimos captar de dentro do campo durantes os jogos do Brasil. Travestido de operador de VT, eu narrava os bastidores do jogo mostrando cenas que as câmeras da transmissão oficial não mostravam. Foram imagens belíssimas captadas por Toniko que profissionais experientes do Centro Internacional de Imprensa consideraram as mais lindas da Copa."

Trecho extraído do depoimento de Marcelo Tas, A minha história da Olhar Eletrônico, publicado no livro Made in Brasil: três décadas do vídeo brasileiro, de Arlindo Machado (Ed. Iluminuras, 2007)


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Dados técnicos

Varela na Copa (1986) | Marcelo Tas, Olhar Eletrônico, Toniko Melo
Vídeo | 60’00”, U-Matic, NTSC, cor

Excerto da obra

30 ANOS VIDEOBRASIL | ENTREVISTA COM MARCELO TAS

Marcelo Tas comenta o processo de criação e as abordagens do personagem Ernesto Varela

30 ANOS VIDEOBRASIL | ENTREVISTA COM GOULART DE ANDRADE

Figura central da televisão brasileira, Goulart de Andrade conta como conheceu os meninos da Olhar Eletrônico em 1983, durante o 1º Festival, e comenta o personagem Ernesto Varela

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Antigas e novas disputas
Anexos

A minha história da Olhar Eletrônico, por Marcelo Tas (Made in Brasil: três décadas do vídeo brasileiro, Arlindo Machado, 2007). [pt]

Os destaques do Videobrasil, por Rogério Correa (Vídeo, Informática Popular, set.1987). [pt]

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